Ver, escutar e abraçar aquilo que não tem forma




Ver, escutar e abraçar aquilo que não tem forma

Wu Jyh Cherng


Aquilo que se olha e não se vê, se chama invisível

Aquilo que se escuta e não se ouve, se chama inaudível
Aquilo que se abraça e não se possui, se chama impalpável
Estes três não podem ser revelados
Por isso se fundem e  se tornam um


No primeiro trecho, aparentemente, Lao Tse está no falando sobre o óbvio: aquilo que não se Vê se chama invisível, aquilo que não se ouve se chama inaudível, o que não se possui se chama impalpável.

Se Ele dissesse o contrário, que o que não se Vê se chama visível, aí então estaria em contradição.  No entanto, para que o invisível, o inaudível e o impalpável possam ser visível, audível e palpável, têm que ser o que se olha, o que se escuta e o que se abraça.  Ao mesmo tempo que não se vê, que não se ouve e que não se possui.

Nessas três frases Ele fala da importância de se encontrar algo que está além dos sentidos.

Ele diz que

-          olhar é diferente de ver
-          escutar é diferente de ouvir
-          abraçar é diferente de possuir


A terceira frase que diz: “Aquilo que se abraça e não se possui, se chama impalpável” é bem mais fácil de entender porque no Capítulo anterior, Lao Tse diz que o Homem Sagrado abraça o mundo mas não possui o mundo.

O abraço que não possui não é o abraçar a forma.  E não é uma forma de abraço.  Qualquer coisa que tenha uma forma pode ser abraçada.  É palpável.  Quando se abraça sem possuir, não se pode abraçar através da forma.  Nosso corpo é uma forma.  Uma forma abraça outra forma.  Para poder abraçar sem possuir não se pode abraçar através da forma.

Dessa maneira, Lao Tse está falando em ver, escutar e abraçar aquilo que não tem forma.

Em seguida, através da não-forma, pode-se abraçar o que se vê, o que se ouve, o que é palpável.

Em relação às coisas do mundo, devemos abraçá-las através da não-intenção, do não-julgamento. 

Dessa maneira, podemos ver mas não olhar; abraçar mas não possuir; escutar mas não ouvir.

Aquilo que é invisível, inaudível e impalpável não pode ser visto através dos olhos, nem ouvido através dos ouvidos, nem apalpado com as mãos.

É preciso se ouvir através de um sentido mais profundo.  Ver, não através dos olhos e sim com a consciência mais profunda.  Abraçar, não com as mãos mas através de um sentido mais profundo.

Ao mesmo tempo que se fala de uma busca, de uma procura de algo que está além da linguagem.  Tudo o que pode ser visto, ouvido, apalpado, são coisas que estão dentro da linguagem.

Ele fala de se buscar algo que está além da linguagem, além da forma.  Além da limitação.  Além do tempo e além do espaço. 

Esse algo que é infinito, indivisível, que não tem forma e não tem imagem nem linguagem, é o que chamamos de Tao.  A pessoa que consegue encontrar esse algo, está se realizando no Tao.

Essa é exatamente a busca do Tao.

Por outro lado, Lao Tse nos diz que isso também não significa que iremos renunciar ao que está do lado de cá...

Não podemos deixar de viver e encarar a vida, ou seja, a busca desse algo que está além do tempo e do espaço, não serve como pretexto para deixarmos de ser responsáveis, para deixarmos de trabalhar, de viver a vida, de fazer o que tem que ser feito.

Se pressupormos esse algo infinito que não tem forma nem imagem como algo fóra de nós, estaremos buscando algo fóra de nós.  E isso é uma espécie de fuga.

A infinitude se encontra dentro de nós.

E porque essa infinitude está dentro de nós é que a maneira de encontrá-la é vivê-la!  Vivê-la é utilizá-la para viver a coisa certa.  Ou seja, viver através do não-julgamento, da não-intenção, da não-linguagem, do coração esvaziado, transparente e quieto para encarar tudo aquilo que está em torno de nós, que nos envolve.

Isso é o que Ele quer significar quando diz “olhar e não ver, escutar e não ouvir, abraçar e não possuir”.

Sempre que queremos abraçar e possuir algo passamos a enfrentar nossas grandes frustrações.

Tudo o que existe no mundo que pode ser abraçado, não pode ser possuído.  Seu carro um dia apodrecerá, seu amor um dia morrerá ou deixará você.  Você pode ter uma ideologia e um dia pode mudar de opinião.  Tudo o que existe no universo está em constante transformação e assim, não pode ser abraçado.  A fotografia um dia amarelece e se perde.  A memória de algo que já não mais existe, um dia desaparece.

 No Taoísmo, não se projeta uma meta para ser alcançada e depois se projeta outra meta.  O tempo inteiro temos que ir integrando as coisas, caminhando junto, sem que haja a intenção de alterar o fluir das coisas.

Quando se faz as coisas com intenção, quando o projeto fica pronto, tem que se buscar outro.  A intenção é um condicionamento que não nos permite fluir com naturalidade, que não nos permite nos integrar com o todo, sem barreiras.  A intenção é fruto do ego.  Na intenção, pensamos que as coisas são eternas e indissolúveis, no entanto, na é eterno ou indissolúvel.

Temos que reconhecer até que ponto é  possível ou impossível; temos que reconhecer nossos apegos ou não-apegos.  Quando não criamos nenhum truque para esconder nossas incapacidades, aí então teremos a oportunidade de transformá-las.

A intenção não é necessária, é apenas um fator que existe e que, ao ser trabalhado, um dia deixará de existir.  A intenção inicial é para despertar a auto-destruição do ego.

Um governante taoísta deve usar a intenção de governar seu povo, administrar o país de acordo com as necessidades de seu povo, ele tem que abraçar o povo sem possuí-lo, sem dominá-lo.  Tem que deixar o destino do povo fluir, sendo apenas um assistente e não um interventor.

Uma consciência em estado mais puro não tem desejo, não tem intenção, não tem julgamento.  É uma consciência transparente.

O Homem Sagrado é aquele que realiza obras para as pessoas e essas pessoas nem realmente percebem que foram beneficiadas.  O Homem Sagrado não tem necessidade de ser reconhecido.  Faz o que tem que ser feito e quando chega a hora, se retira e pronto.  Acabou.


Chung Tzu, em um dos seus contos, fala de um encontro simulado entre três pessoas provenientes de três reinos.  Essas pessoas falam cada um sobre seu país:

O primeiro diz:  Meu governante é um tirano, explorador, escravizador.

O segundo diz:  Meu rei é muito bom, organizador, as leis são claras, tudo está em seu lugar.

O terceiro diz:  Não sei quem é meu rei.  O povo vive, planta, colhe e tudo acontece.  Nunca vimos o rei, nem ouvimos falar sobre ele, nem ao menos sabemos onde vive.

Essa é a utopia do Taoísmo.  As coisas apenas são e não precisam aparecer nem serem reconhecidas.  Apenas são.



Capítulo 14


Aquilo que se olha e não se vê, se chama invisível
Aquilo que se escuta e não se ouve, se chama inaudível
Aquilo que se abraça e não se possui, se chama impalpável
Estes três não podem ser revelados
Por isso se fundem e  se tornam um

Quando superior não é luminoso
Quando inferior não é vago

O Constante que não pode ser nomeado
É o retorno à não-existência
É a expressão da não-expressão
É a imagem da não-existência
A isso se chama indeterminado

Encarando-o, não vejo sua face
Seguindo-o, não vejo suas costas

Quem mantém o Caminho Ancestral,
Poderá governar a existência presente
Quem conhece o Princípio ancestral,
Encontrará a ordem do Caminho


Foto: Sítio das Estrelas, Janine


TAO TE CHING

O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE

Lao Tse, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 14
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Transcrição e Síntese de Aula Gravada na Sociedade Taoísta do Brasil,
Rio de Janeiro, em 13 e 20 de setembro de 1994

Transcrição e Síntese de Janine Milward


A tradução dos Capítulos do Tao Te Ching foi realizada por Wu Jyh Cherng,
do chinês para o português,
 e foi primeiramente publicada pela Editora Ursa Maior,
sendo hoje  publicada pela Editora Mauad, São Paulo, Brasil

Nesta mesma Editora, encontra-se ainda no prelo
a realização da publicação, em breve, das interpretações de Wu Jyh Cherng
 acerca os 81 Capítulos da obra máxima de Lao Tse, o Tao Te Ching