TAO TE CHING
O Livro do
Caminho e da Virtude
Lao Tse, o
Mestre do Tao
Capítulo 2
Quando os
seres sob o céu reconhecem o belo como belo
Então isso já
se tornou um mal
E reconhecendo
o bem como bem
Então já não seria
um bem
A existência e
a inexistência geram-se uma pela outra
O difícil e o
fácil completam-se um ao outro
O longo e o
curto estabelecem-se um pelo outro
O alto e o
baixo inclinam-se um pelo outro
O som e o tom
são juntos um com o outro
O antes e o depois
seguem-se um ao outro
Portanto
O Homem
Sagrado realiza a obra pela não-ação
E pratica o
ensinamento através da não-palavra
Os dez mil
seres fazem, mas não para se realizar
Iniciam a
realização mas não a possuem
Concluem a
obra sem se apegar
E justamente
por realizarem sem apego
Não passam.
Interpretação de Janine Milward
Neste Capítulo, Lao Tse nos fala sobre
uma variedade de temas e/ou questões fundamentais no Taoísmo: o não-julgamento,
a impermanência ou eterna mutação, a não-ação, a não-palavra; O Te, A Virtude
realizada pelo Homem em relação à duração e à constância, ao apego e ao
não-apego, ao corpo físico e ao corpo espiritual, à mortalidade e à
imortalidade... em seu Caminho rumo ao seu Tao.
A primeira estrofe desse Poema, nos
inicia na Virtude a ser praticada em relação ao julgamento de tudo o que existe
entre o Céu e a Terra e que pode ser percebido e apreendido pelo Homem: o
não-julgamento.
Esse não-julgamento deve estar sempre
presente em nossas vidas – o que é na verdade bastante difícil na medida que,
socialmente e culturalmente e também a nível comportamental desde nosso ninho
familiar, o que sempre sobrevém é o julgamento e não o não-julgamento... Mas
Lao Tse todo o tempo nos ensina a nos flagrarmos a cada vez em que colocamos
nosso julgamento em pauta.
A cada vez que expiramos um julgamento
sobre qualquer coisa, cristalizamos esse julgamento de forma quase irreversível
e portanto, primeiramente, estamos desrespeitando a opinião do resto dos seres
do universo que podem ter outro julgamento sobre a mesma questão.... E em
segundo lugar, também Lao Tse nos alerta sobre o julgamento da verdade.... O
que é a verdade e quem pode julgar qualquer coisa sob sua própria ótica
classificando-a como verdade? Isso fica bem claro quando ele nos diz:
Quando os seres
sob o céu reconhecem o belo como belo
Então isso já
se tornou um mal
E reconhecendo
o bem como bem
Então já não
seria um bem
É interessante que Lao Tse tenha
começado esse Capítulo versando sobre o julgamento e o não-julgamento... e
tenha terminado o mesmo versando sobre a mortalidade e a imortalidade...
Simplesmente porque os dois primeiros itens são totalmente ligados aos dois
últimos, respectivamente. Com isso, Lao Tse, ao longo de toda sua obra, vem nos
dizendo que a grande Virtude do Tao é a Humildade, a Simplicidade. Esses
conceitos sobre humildade e simplicidade pouco se encaixam de forma adequada à
nossa sociedade atual bem como já não se encaixava na sociedade de outrora,
ainda no tempo de Lao Tse, como antes dele.
Dessa maneira, o Mestre todo o tempo se
mantém nos alertando para o fato de que dirigimos nosso julgamento para as
questões manifestadas como somente aquilo que existe no universo e que,
portanto, aparentemente, são as únicas a merecerem algum grau de
importância.... Ledo engano: todas essas questões são apenas superficiais,
mutáveis, pertencendo à duração e não à constância do universo. E assim sendo,
terminam, acabam, mudam conforme a correnteza do momento, a moda do momento, a
necessidade política e social do momento – são apenas duráveis e não
constantes, são apenas passageiras e não eternas.... Portanto, não merecem
qualquer julgamento. O melhor que o Caminhante faz, neste sentido, é permanecer
dentro do não-julgamento e ater-se apenas às questões relativas à constância e
não à duração
O julgamento leva o Caminhante a
caminhos tortuosos, regidos pela polarização, tema da segunda estrofe:
A existência e
a inexistência geram-se uma pela outra
O difícil e o
fácil completam-se um ao outro
O longo e o
curto estabelecem-se um pelo outro
O alto e o
baixo inclinam-se um pelo outro
O som e o tom
são juntos um com o outro
O antes e o
depois seguem-se um ao outro
Quando Lao Tse diz: "A existência
e a inexistência geram-se uma pela outra", ele já está nos levando a
adotarmos, a assumirmos uma atitude de não-julgamento ditado pela impermanência
de tudo no universo: a eterna mutação é a única não-mutação possível dentro do
Tao da natureza.
Ao longo da segunda estrofe, Lao Tse
vai nos mostrando as questões que poderiam ser vistas sob a ótica do julgamento
mas que no entanto, são apenas questões impermanentes que vão se modificando de
acordo com o espaço e o tempo – não sendo, portanto, polaridades dicotômicas
entre si, e sim, complementações que correspondem às atuações do Yin e
do Yang do Tao do Universo.
O Yin é a manifestação da noite,
por exemplo, dentro de nossa vida cotidiana em nosso Planeta. É a Não-Luz.
O Yang é manifestação do dia, por
exemplo, dentro de nossa vida cotidiana em nosso Planeta. É a Luz.
Luz e Não-Luz, em todo o universo,
estão sempre em processo de eterna mutação. Essa Luz e essa Não-Luz podem ser
objetivadas através da Mandala do Tai Chi, ou seja, o enlace eterno
entre o Yin e o Yang.
Sempre que o Yin atinge sua
energia máxima, dá lugar ao Yang, que atingindo sua energia máxima, dá
lugar ao Yin, que atingindo sua energia máxima, dá lugar ao Yang.....
e assim infinitamente, dentro da impermanência de tudo no universo, a eterna
mutação.
Portanto
O Homem
Sagrado realiza a obra pela não-ação
E pratica o
ensinamento através da não-palavra
Nessa terceira estrofe, em poucas
palavras, Lao Tse nos sintetiza o porquê, o sentido intrínseco das duas
primeiras estrofes deste Capítulo 2: o não-julgamento e a impermanência.
Sendo o não-julgamento uma Virtude, Te,
e a impermanência uma realização do Tao, O Caminho, o que resta ao Homem
Sagrado – aquele que caminha seu Caminho em busca da iluminação e infinitude de
sua consciência e iluminação e infinitude de sua vida – o que resta a esse
Homem que trilha seu Caminho do Tao é viver a vida de forma natural, como ela
é, sem julgamentos nem apegos, apenas vivendo o cotidiano simplesmente,
deixando a natureza ser da forma como ela se apresenta no momento, tomando as
decisões sobre os eventos que se apresentam no momento sem grandes
pré-ocupações ou julgamentos acerca, fundamentalmente, do futuro – que é sempre
regido pelo Tao da natureza. Realizando aquilo que tem que realizar
simplesmente porque tem que realizar.
Esse conceito é deveras importante
dentro do Te, A Virtude: a não-ação, o Wu Wei. Não-ação em nenhuma
circunstância significa não agir. Não. Significa porém, agir quando é preciso
agir e fazer isso naturalmente, de acordo com as circunstancias do momento.
Assim como o sol brilha e aparece todos os dias para nós, iluminando nossas
vidas.... assim como a chuva abençoada cai nos renovando a vida, enchendo as
minas, as nascentes, os rios, os lagos, os mares....
Outro conceito fundamental é a
não-palavra: essa questão se relaciona com o não se enveredar por caminhos
demais tortuosos e pouco profícuos. O Homem Sagrado é aquele que se atém ao que
é verdadeiramente importante, ou seja, aquilo que é constante, eterno – essa é
a não-palavra. Tudo aquilo que se relaciona com a duração, que é impermanente,
é então considerado a palavra.
Também a não-palavra tem o sentido de
palavra sem intenção. Sobre a questão do que significa ‘intenção’, Lao Tse
prossegue:
Os dez mil
seres fazem, mas não para se realizar
Iniciam a
realização mas não a possuem
Concluem a
obra sem se apegar
E justamente
por realizarem sem apego
Não passam.
Na quarta e última estrofe, Lao Tse nos
coloca diante do grande drama da vida e seu porquê: o que significa nossa
encarnação e o fato de o homem possuir a mente e poder desenvolvê-la, criar uma
cultura, uma sociedade, vivenciar a natureza do universo como não apenas parte
desse universo como também construtor do mesmo através uma vida de trabalho e
realizações?
Nesse ponto, retomamos às estrofes
anteriores e suas lições sobre não-julgamento, impermanência da duração,
permanência da constância, não-ação, não-palavra... Como também não devemos nos
esquecer da grande Virtude, Te, de Caminhar o Caminho do Tao sempre agindo com
Humildade – independente daquilo que nossa cultura massiva e nossa sociedade
esmagadora nos impele a ser e agir durante nossa vida.
Nossa cultura e nossa sociedade nos quase
obrigam a realizarmos algo pretensamente grandioso em nossas vidas – e
sobretudo algo dentro do critério da duração e da impermanência – e,
aparentemente e superficialmente, querem nos fazer acreditar que essa é uma
vida de plenitude de trabalhos e realizações e ainda mais, e muito mais, querem
que sempre busquemos ( e por isso nos esforcemos ao máximo) os louros da glória
e do reconhecimento públicos de nosso valor (?!).
O que Lao Tse nos diz na última estrofe
do Capítulo 2 - e estará nos dizendo ao longo de sua obra -, é que, bem ao
contrário do que no parágrafo acima foi dito, o trabalho e as realizações do
homem e do Homem devem se prender apenas ao próprio trabalho e às próprias
realizações – porque estamos encarnados nesse planeta de Trabalho e de Iluminação
para efetuarmos essas questões. Mas, na realidade, nenhum trabalho ou
realização que fazemos de fato nos pertencem.... Não. Não somente não nos
pertencem pessoalmente quanto também não pertencem apenas ao resto dos seres no
universo.... Porque tudo no universo apenas é e apenas dever ser da forma que é
e que deve ser. Esta é a naturalidade, a simplicidade, a humildade do próprio
universo que nada cria para si mesmo, apenas cria e não pede qualquer
recompensa ou reconhecimento por isso.
Nosso sol nos dá sua luz de vida e de
sobrevivência porque ele é um sol... e esse é o seu trabalho e essas são suas
realizações. A chuva cai porque seu trabalho é cair e suas realizações são
dadivosas, certamente, mas simplesmente porque assim são e devem ser. Existe em
todo o universo uma vivência real de trabalho e de realizações que é plenamente
impessoal: ela apenas é como dever ser e enquanto deve ser.... ou seja, também
nosso sol continua sua vida de queimar seu combustível interior até o momento
em que não haja mais combustível para ser queimado, e ele entre em outro
processo de mutação que haverá de inchá-lo de tal maneira que quase se
encontrará com nosso planeta e após isso, deverá desinchar de tal maneira que
se tornará uma estrelinha amorfa e cinzenta, sem antes ter soltado no espaço um
chumaço de gases que um dia será observado emocionadamente por alguém com um
potente telescópio, vivendo em outro planeta, em outro sistema solar que ainda
esteja vivendo seu trabalho e suas realizações!
Então, na quarta estrofe, Lao Tse nos
diz para sim, vivermos nossa vida de trabalho e de realizações no Planeta Terra
mas que não nos contentemos e melhor ainda, não ambicionemos os louros da
gloria e do reconhecimento público em relação á nós mesmos, pobres mortais. Ao
invés disso, por que não nos contentarmos e ambicionarmos os louros da floria e
do reconhecimento universais em relação ao nosso trabalho espiritual, ou seja,
ao nosso Caminho sendo trilhado em busca de nossa Iluminação e posterior
Imortalidade, nossa Liberação?
Para tanto, Lao Tse menciona o apego e
o não-apego. O apego ao corpo físico, que é material e impermanente,
mutável.... não vale a pena. É algo apenas transitório, pertence ao campo da
duração.... (como pode o sol ter apego à sua forma atual se esta todo o tempo
está em mutação – mesmo que ainda não visível – mas que certamente em um futuro
longínquo será uma realidade? Uma transformação inequívoca dentro da eterna
mutação do universo?)
O não-apego ao corpo físico e seus
trabalhos e realizações reconhecidos culturalmente e socialmente e publicamente
é aquilo que Lao Tse nos ensina. Realizar o trabalho sim, mas realizá-lo dentro
da não-ação, realizá-lo porque é imperioso que seja realizado. E pronto.
E justamente
por realizarem sem apego
Não passam.
Lao Tse, então, emenda e conclui que,
apenas através da realização do corpo espiritual – dentro da Alquimia do
Caldeirão – é que o Homem Sagrado pode ingressar na Imortalidade, na Constância
– mesmo que ainda fazendo parte do eterna mutação do Tao do universo.
O corpo físico, esse corpo tão cultuado
pela cultura e pela sociedade como o maior instrumento de nossa encarnação para
a realização de nosso trabalho de vida, é algo que tem seu fim, que termina. A
grande importância do corpo físico, de nossa encarnação como homem possuidor de
mente que se desenvolve até poder expandir sua consciência à sua infinitude...
é o fato desse corpo, materializado, nos conter o espírito, que é imaterial. E
será sempre o espírito – aliado à infinitude e expansão da consciência - quem
buscará a eternidade, a Iluminação, a Imortalidade, a Liberação.... e não o
corpo físico em si.
O corpo espiritual, ou Corpo de Luz,
que não tem fim, ao contrário, ele permanece em eterna mutação dentro da
constância da Luz do Tao do universo, esse sim, "não passa"
(como nos ensina Lao Tse), ou seja, não termina, continua, alcança a infinitude
da vida aliada à infinitude da consciência – esse é o Caminho da Iluminação e,
fundamentalmente, o Caminho da Imortalidade.
Capítulo 2
Quando os seres sob o céu reconhecem o belo como belo
Então isso já se tornou um mal
E reconhecendo o bem como bem
Então já não seria um bem
A existência e a inexistência geram-se uma pela outra
O difícil e o fácil completam-se um ao outro
O longo e o curto estabelecem-se um pelo outro
O alto e o baixo inclinam-se um pelo outro
O som e o tom são juntos um com o outro
O antes e o depois seguem-se um ao outro
Portanto
O Homem Sagrado realiza a obra pela não-ação
E pratica o ensinamento através da não-palavra
Os dez mil seres fazem, mas não para se realizar
Iniciam a realização mas não a possuem
Concluem a obra sem se apegar
E justamente por realizarem sem apego
Não passam.
TAO TE CHING
O Livro do Caminho
e da Virtude
Lao Tse, o
Mestre do Tao
Capítulo 2
Interpretação
de Janine Milward
Foto: Sítio das
Estrelas, Janine
A tradução dos
Capítulos do Tao Te Ching foi realizada
por Wu Jyh Cherng,
do chinês para
o português,
e foi
primeiramente publicada pela Editora Ursa Maior
e posteriormente publicada pela Editora Mauad,
São Paulo.
Nesta mesma
Editora, encontra-se
a realização da
publicaçãodas interpretações de Wu Jyh Cherng
acerca os 81 Capítulos da obra máxima de Lao
Tse, o Tao Te Ching