Natural é aquilo que está de acordo com a lei do céu e da terra e dos homens.




 Natural é aquilo que está de acordo com a lei do céu e da terra e dos homens

Wu Jyh Cherng



Falar pouco é o natural

O Taoísmo - como qualquer outra prática mística -, inevitavelmente, expõe a pessoa a uma série de experiências místicas. 

De uma forma geral, o comportamento do Taoísmo diante desses fenômenos ou dessas experiências que são adquiridos através a meditação, do ritual ou de qualquer outra prática, é o de colocar essas experiências de maneira menos significativa possível.  Isto não significa intencionalmente reprimir ou evitar, apenas não ficar alimentando ou especulando sobre esses fenômenos.

Todas as experiências interiores - e é por isso que são interiores -, não têm necessidade de serem colocadas exteriormente, de serem exteriorizadas.

Quando essas experiências interiores são colocadas constantemente para fora, podem levar a pessoa a uma grande perda de energia e também podem conduzir a consciência da pessoa para um caminho que está fora da realização espiritual.

Por isso, o Taoísmo não incentiva o cultivo do fenômeno.

Isto não quer dizer que na prática espiritual do Taoísmo não aconteçam fenômenos.  Apenas que esses fenômenos devem ser encarados como nada e não encarados como algo muito especial.

É muito comum se encontrar em outras religiões os testemunhos daquilo que as pessoas passam a ver, a sentir, a ouvir e tais fenômenos são entendidos como ‘prova de fé’, etc.   O que realmente acontece é que tais procedimentos podem levar as pessoas a uma posição muito radical e muitas vezes até à histeria.  Ou pode-se criar o orgulho e a vaidade - coisas que nada ajudam.


Basicamente, o Taoísmo vê que a Iluminação do Espírito não é necessariamente vinculada aos fenômenos sobrenaturais.

Uma pessoa iluminada é uma pessoa que tem uma lucidez interior, que tem uma consciência lúcida e que não necessariamente se manifesta na vida cotidiana em forma de fenômenos paranormais ou sobrenaturais.

Por outro lado, uma pessoa que tenha a capacidade de provocar fenômenos extra-sensoriais ou paranormais não significa que seja iluminada.

De uma forma geral, uma pessoa que esteja a toda hora demonstrando fenômenos extra-sensoriais ou paranormais ou sobrenaturais, normalmente, tem a consciência muito limitada, seu grau de iluminação é muito limitado pela vaidade, pelo orgulho, pelo auto-encantamento.  Esse tipo de pessoa  costuma externar coisas que viu, que ouviu, etc.  Estas são exatamente aquelas pedras que tentamos remover do caminho da realização espiritual.

Desse modo, o Taoísmo não enfatiza os fenômenos: não foge deles mas não procura alimentá-los.


Pergunta: 
Isso tem alguma coisa a ver com o Hexagrama Obscurecimento da Luz?

Resposta de Cherng: 
Certo.   Procuramos colocar a iluminação interiormente e não ficar exteriorizando.  Uma pessoa que venha praticando a meditação há bastante tempo, naturalmente será levada à premonição.  Na verdade, esse é um dos níveis rasteiros que se pode atingir com a meditação.  Pode-se ir a níveis bem mais profundos, pode-se ver coisas acontecendo a distância, pode-se prever coisas que ainda vão acontecer, pode-se ver cenas...  Tudo isso pode acontecer como conseqüência da meditação.  Nosso cérebro é muito complexo, tem inúmeros departamentos que normalmente não utilizamos.


Através da meditação, quando a pessoa relaxa profundamente, inúmeros pequenos canais de energia se desbloqueiam e deles flui energia e essa energia pode acionar uma série de capacidades.

Essa abertura de energia pode acontecer no campo dos fenômenos como em outros campos.  Também pode acontecer que a pessoa passa a ser muito ‘afiada’, sempre tendo uma palavra pronta na ponta da língua, sempre conseguindo enxergar com muita lucidez e conseguindo deduzir coisas com muita precisão.  É aquele tipo de pessoa que ‘não perdoa nada’ e não deixa nada passar e vai interpretando tudo, todos os gestos e movimentos e ações das outras pessoas e assim consegue demonstrar uma análise e uma observação bastante aguçadas e afiadas.

Por isso, Lao Tse em outro Capítulo do Tao Te Ching, diz ‘cegando-se o corte e desatando-se os nós’ - os nós são bloqueios interiores.  O fio da lâmina é cortante, portanto, quando uma pessoa é ‘afiada’, ela é cortante.  Quando uma pessoa tem uma consciência muito polida, ela corta como uma faca afiada, apenas que em nível mais sutil.

O Hexagrama mencionado do I Ching, Obscurecimento da Luz, diz que quando existe um excesso de luz, essa luz fere.  Quando há muitos raios solares, a terra torna-se estéril.  Quando uma pessoa tem uma consciência muito afiada, ela tem uma consciência que corta, portanto ela pode se tornar nociva para si mesma e para os outros.  Nociva para si mesma porque essa pessoa vai sempre continuar afiando sua faca.  Se mantivermos uma faca sempre polida e afiada, chega um momento em que não teremos mais uma faca porque todo o metal será consumido pelo polimento demasiado.

Igualmente, se toda a energia e toda a consciência que conseguirmos através da meditação não forem discretamente preservadas, serão gastas como o fio da faca.

Em relação às outras pessoas, essa faca afiada pode cortar e lesar.  Se uma pessoa tem observações muito afiadas, suas palavras e suas deduções poderão machucar e prejudicar as outras pessoas.  Os outros, provavelmente, não estarão prontos para receberem essa ‘cirurgia’ sem anestesia, sem o devido preparo.

Nesse caso, a pessoa muito ‘afiada’ precisa ser despertada por si mesma ou tentar ser menos afiada, tentar ajudar os outros sem feri-los.  Isso é o que Lao Tse diz em relação às pessoas que chegaram a um nível muito afiado.

É preciso sermos menos exibicionistas, falarmos menos.  Nem sempre aquilo que está em nossa mente deve ser falado.  Também nem sempre aquilo que é verdade para nós, deverá ser dito.  Isso não  é para nos tornar hipócritas ou falsos mas sim para sermos mais cautelosos com a nossa mente, com a nossa palavra, com o nosso gesto.

Cada gesto nosso gera uma causa que gera um efeito, tanto em nós mesmos como em outras pessoas.  Cada palavra nossa é uma causa que gera um efeito.

Não falar em excesso, não fazer coisas em excesso: maior cautela em relação aos nossos gestos.  Não é um sentimento punitivo nem um sentimento de culpa: ‘não faço e não digo nada porque não quero nem fazer nem dizer coisas erradas’.  Não, não é com esse sentimento.

Devemos ter um sentimento, sim, de afetividade com as pessoas.  Essa afetividade pode ser vista de forma mais intensa nos relacionamentos afetivos.  No relacionamento social amplo, isso é mais ameno.

Quando uma pessoa está apaixonada por outra, ela tenta não desagradar o outro.  A afetividade traz o cuidado em relação à outra pessoa.  Esse sentimento de afetividade deve ser global, universal.

Quando uma pessoa estende seu sentimento de afeto a todas as outras pessoas, ela aprende a ser um pouco mais cautelosa, não falando em excesso, tendo mais cuidado com as palavras e com os gestos.

Isso não é para sermos egoístas - pelo contrário, é para sermos menos egoístas.

Existem horas em que precisamos ser determinados, precisos.  Existem horas em que precisamos ser mais resguardados.  Não com o sentimento de auto-proteção para não nos expor - porque isso seria um sentimento egoísta.

O Taoísmo trabalha essencialmente com a consciência universal e não com a consciência egoísta.  Todo o tempo estamos trabalhando com a consciência.  O ar que respiramos vem das outras pessoas e a elas retorna.  A energia de nosso corpo vem de outros corpos e a eles retornam.  Energeticamente, somos todos uma só pessoa com a mesma energia e o mesmo ar.

Dessa maneira, nós vivemos na consciência universal e não na consciência egóica.

Quando uma pessoa se resguarda de dizer coisas que iriam ferir ou prejudicar outras pessoas, ela não está sendo egoísta.  Embora que, por mais lúcidos que iluminados que possamos ser, ainda não somos plenamente iluminados.

Até que ponto a verdade é verdade?

Toda a verdade é relativa.  Mais ainda a verdade pessoal.  Então, cultivar dentro de nós o sentimento de afeto é fundamental.  Isso faz parte de nosso processo de conscientização.  É um processo de consciência universal e não de consciência egóica.

Lao Tse nos diz que temos três Tesouros:  o primeiro se chama Afetividade; o segundo se chama Sinceridade; e o terceiro se chama Humildade.

O Taoísmo cultiva a sabedoria da água: um pouco de água jogada dentro do mar faz parte do oceano, ou seja, deixa de ser uma consciência egóica - um copo de água - para ser uma consciência universal - a água do mar.  A água do mar é a água de todas as águas - e a água desce sempre para baixo.

Nesse sentido, hierarquicamente, dentro do Taoísmo, o discípulo chama o Mestre de Mestre Pai - demonstrando seu respeito - e o Mestre chama seu discípulo de Irmão, demonstrando que o discípulo encontra-se no mesmo nível do mestre.

Isso é humildade, é sabedoria da razão.  E não é teoria.  É prática.  Toda a filosofia do Taoísmo só faz sentido a partir do momento em que ela se mostra prática.  Somente a prática faz o sentido da teoria.  Por isso, o Taoísmo se chama Taoísmo.  Tao é o Caminho.  O Caminho só tem sentido quando nele caminhamos.  Não adianta construir uma grande estrada se ninguém anda nela... assim, logo a estrada desaparece.

A palavra Tao do Taoísmo significa Caminho.  Caminho só é caminho se alguém nele caminha.  A filosofia só é filosofia quando alguém a vive - senão seriam meras especulações, meras palavras.

Por isso, logo no início deste Capítulo, Lao Tse nos diz que ‘Falar pouco é o natural “.  Ele não diz que falar pouco é bom nem diz que falar muito é ruim.  Ele apenas diz que falar pouco é o natural.  O natural é o que é bom e o não-natural é o que não é bom.

O que é natural?

Natural é aquilo que está de acordo com a lei do céu e da terra e dos homens.  É aquilo que está de acordo com o grande destino cósmico.  É acordar quando o sol aparece e repousar quando a noite desce - acordar junto com o dia e repousar junto com a noite.  Iluminar no momento da iluminação e obscurecer no momento do obscurecimento.  É falar no momento das palavras e silenciar no momento das não-palavras.  Isso é que se chama de ‘natural’ e ‘falar pouco é o natural’.



Capítulo 23

Falar pouco é o natural

Um redemoinho não dura uma manhã
Uma rajada de chuva não dura um dia

De onde provêm essas coisas?
Do Céu e da Terra
Se nem o céu e a terra podem produzir coisas duráveis,
Quanto mais os seres humanos?

Por isso,
Quem segue e realiza através do Caminho, adquire o Caminho
Quem se iguala à Virtude, adquire a Virtude
Quem se iguala à perda, perde o Caminho

Convicção insuficiente leva à não-convicção

...............

Foto: Sítio das Estrelas, Janine



TAO TE CHING

O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE

Lao Tse, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 23
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Transcrição e Síntese de Aula Gravada na Sociedade Taoísta do Brasil,
Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1994

Transcrição e Síntese de Janine Milward


A tradução dos Capítulos do Tao Te Ching foi realizada por Wu Jyh Cherng,
do chinês para o português,
 e foi primeiramente publicada pela Editora Ursa Maior,
sendo hoje  publicada pela Editora Mauad, São Paulo, Brasil

Nesta mesma Editora, encontra-se ainda no prelo
a realização da publicação, em breve, das interpretações de Wu Jyh Cherng
 acerca os 81 Capítulos da obra máxima de Lao Tse, o Tao Te Ching