Encontrando e abraçando a simplicidade





TAO TE CHING
O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE
LAO TSE, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 19
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Transcrição e Síntese de Aula Gravada na Sociedade Taoísta do Brasil,
Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 1994



Capítulo 19


Anule o sagrado e abandone a inteligência
E o povo cem vezes se beneficiará
Anule a bondade e abandone a justiça
E o povo retornará ao amor filial e ao amor paternal
Anule a engenhosidade e abandone o interesse
E não haverá mais ladrões nem roubos

Se essas três frases ditas não são o suficiente
Então faça com que se tenha o que se possa confiar
Encontrando e abraçando a simplicidade,
Reduzindo o egoísmo e diminuindo os desejos.



Este Capítulo nos fala de um dos comportamentos essenciais no Taoísmo: o de fazer as coisas com o mínimo possível de intenção.  Fazer as coisas com discernimento mas sem julgamento.  Julgamento no sentido pejorativo de preconceito, preceito ou conceitos radicais.  Não deixar de fazer as coisas, mas fazê-las com a maior naturalidade possível.

Para o Taoísta que cultiva o mundo das Virtudes, um dos comportamentos essenciais é o de não viver com engenhosidade, com esperteza e o de não tornar as coisas complicadas.

Uma pessoa muito engenhosa age com muitas manobras, com muitas curvas.  As coisas podem até ter uma aparência de ‘fáceis’, mas na realidade são ‘armadas’ por detrás.  Não é bom ‘armar’ situações; não é bom criar uma vida muito complicada.  Bom é ser simples.  Mesmo as tarefas mais trabalhosas devem ser executadas de uma maneira simples.


Quando é a diferença entre o espírito da complicação e o espírito da simplicidade?  Qual a diferença entre um trabalho simples e um trabalho complicado?

O espírito complicado consegue tornar até as coisas simples em coisas complicadas.

Para o espírito da simplicidade, as coisas complicadas continuam sendo complicadas mas são realizadas com simplicidade.  As coisas simples continuam sendo simples e são feitas com simplicidade.

Com a simplicidade interior, a coisa externa não se modifica.

Consertar um carro é mais complicado do que consertar uma bicicleta.  O mecanismo do carro é bem mais complicado mas pode ser consertado com o espírito da simplicidade.  A bicicleta, que é bem mais fácil de ser consertada, deve ser tratada com o mesmo espírito, o da simplicidade.

Quando não se possui a simplicidade, até uma coisa fácil torna-se complicada.


No texto, então, se diz que devemos tentar fazer as coisas com simplicidade; não fazer as coisas com engenhosidade, com esperteza, com malícia.

As coisas complexas devem ser feitas com o espírito simples.  Com o coração tranqüilo, resolvem-se coisas dentro do possível e dentro da naturalidade.  Isso é a simplicidade na forma de agir.

Quem quiser aprender a ser um Taoísta, tem que compreender que dentro do Taoísmo nós tentamos não cultivar a esperteza.  A diretriz está num caminho onde as coisas são tornadas possíveis e simples, fluidas.  Não se cultivam a malícia, a engenhosidade e a esperteza.



Anule o sagrado e abandone a inteligência

Quando se fala do sagrado e da inteligência, está se falando de engenhosidade e de excentricidade.

Normalmente, nos deparamos com o conceito da personalização.  Uma pessoa que chama a atenção é uma pessoa excêntrica.  Porém, para não a chamarmos de excêntrica, dizemos que essa pessoa tem ‘personalidade’.   Uma personalidade muito destacada é uma personalidade excêntrica, diferente dos outros.

Também é preciso não colocar as coisas num pedestal de idolatria.  Os taoístas não cultivam ídolos, não têm esse sentimento.

Todas as imagens taoístas não são ídolos no sentido da idolatria e sim são imagens que fazem nascer dentro de nós a reverencia e o respeito.  Nós respeitamos os mestres ascensionados e as divindades mas não somos apaixonados por eles.

A paixão mística não é uma coisa boa - perdoem-me os cristãos -,  mas esse sentimento de paixão traz a posse, o apego.  No Taoísmo, preferimos trabalhar com o respeito e a reverência, não com paixão nem com idolatria.  E justamente por não possuirmos o sentimento da idolatria é que aceitamos as infinitas divindades.

Na idolatria, normalmente se toma uma posição muito radical, só se aceitando aquilo que está dentro do contexto padrão e o resto é desprezado.  Mesmo a idolatria num grau menos intenso coloca essa questão de ser melhor do que qualquer outra coisa.  Isso é um julgamento radical e não é saudável.


No Taoísmo, quando colocamos Lao Tse como patriarca central de nossa Tradição, isso acontece porque historicamente e simplesmente assim Ele é.  Não porque ele é superior e melhor.  Simplesmente e historicamente Ele é o nosso patriarca.  Anterior a ele havia outros patriarcas e também abaixo de seu nível, de outras linhagens, de outras escolas.  Existem infinitos patriarcas anteriores e infinitos patriarcas posteriores a Lao Tse, e se ele alcançou este ponto, devemos respeitá-lO por suas Virtudes e pela sua Iluminação, pelo grau da força espiritual e da compaixão que Ele atingiu.  Por isso, o respeitamos e o reverenciamos.

Também aprendemos e nos orientamos através desses Mestres, esses Iluminados, mas não com os sentimentos de paixão e de idolatria e sim com o respeito e a reverência de um discípulo que está disposto a aprender e a se aperfeiçoar e se tornar tão iluminado quanto a iluminação que esses Mestres alcançaram.


O ‘sagrado’ também pode ser entendido por idolatria no sentido do apego: Meu jardim é sagrado e ninguém entra.  Obviamente, podemos ter um espaço reservado para nós mas não desenvolver em relação a esse espaço um sentimento de posse e de fechamento.  Podemos reservar nossa vida particular sem precisarmos ter apego ou sentimento de posse em relação a essa vida, nem torná-la intocada e instransponível. 


Por isso, Ele diz:
Anule o sagrado e abandone a inteligência
E o povo cem vezes se beneficiará


Neste ponto, parece que Lao Tse está falando para um governante.  Normalmente, os governantes se colocam em condição vip, como o homem do poder, um exemplo a ser imitado pelo povo e nessas condições, não podem ser um bom exemplo.

Do mesmo modo, na prática mística, quando não trabalhamos com a engenhosidade nem com o apego, deixamos que todos os acontecimentos fluam dentro de nós.

Na prática da meditação, sentimos coisas, energias, visões.  O que devemos fazer?  Nada, não devemos fazer nada.  Quanto menos controle exercemos sobre nosso corpo ou nossa mente ou nossa energia, melhor para nossa mente, para nossa energia, para nosso corpo.

Esse não-controle não significa criar desordem.


Anule a bondade e abandone a justiça


Na linguagem simbólica dos quatro pontos cardeais, o leste está à esquerda; às suas costas, o norte; o sul está à sua frente e à sua direita encontra-se o oeste.  Em relação ao leste e ao oeste, um lado é compaixão e outro, é justiça.  Um lado é Yang e o outro, é Yin.  Um lado é o elemento Madeira - a compaixão -, o oriente; e o outro lado é o elemento Metal - a justiça - a sobriedade, o oeste.

Quando se anulam o Yin e o Yang, vivemos o estado uno para podermos viver o estado indivisível de ser, resguardando a unidade para que nossa mente não fique ora na bondade, ora na justiça, ora querendo se beneficiar das coisas, ora querendo tirar as coisas.


O Taoísmo nos diz que não devemos cultivar três sentimentos:

-          o sentimento do poder
-          o sentimento da riqueza
-          o sentimento da fama

Isso não quer dizer que não podemos ser poderosos, famosos ou ricos.  A questão é não criar a obsessão pela fama, pelo poder ou pela riqueza.  Esse sentimento é uma doença que nos prejudica.

Quando se usa o poder para doar a vida e retirar a vida, para favorecer num momento e para desfavorecer em outro momento, o que então se vive? Vive-se a alternância das coisas.   Dessa forma não se consegue viver a unidade das coisas.  Como podemos viver a vida e a morte ao mesmo tempo?  Como podemos doar a vida e tirá-la ao mesmo tempo?

Só podemos ter a vida e tirá-la ao mesmo tempo, viver a vida e viver a morte ao mesmo tempo, quando não temos a vida nem a tiramos, quando não vivemos a vida nem a morte ao mesmo tempo, ou seja, apenas quando queremos ter a vida é que temos a vida e não querendo eliminar a vida, para poder eliminá-la.  Somente não se tendo, é que se pode ter.

Resumindo, quanto menos julgamento temos, menos preferências temporárias nós cultivamos.  Quando tivermos um único discernimento, aí então, poderemos ser bondosos e justos ao mesmo tempo.

Normalmente, quando estamos sendo bondosos, deixamos de ser justos e quando estamos sendo justos, deixamos de ser bondosos.  Somente não cultivando a justiça e a bondade ao mesmo tempo é que teremos a justiça e a bondade ao mesmo tempo.


Quando Ele diz:
Anule a bondade e abandone a justiça
E o povo retornará ao amor filial e ao amor paternal

.... significa que as pessoas naturalmente se amam.  Amor filial significa ligar ao passado.  Amor paternal significa ligar ao futuro.  O que é o amor de um pai para o filho?  O amor de hoje ligado ao amanhã.  O que é o amor filial?  É o hoje amando o passado.  Isto significa uma infinita conexão do passado com o futuro, do princípio ao fim, e que não tem princípio nem fim.  Isso é a Constância, isso é um sentimento constante que, ao mesmo tempo, é justo bem como amável.  Para se amar é preciso anular a bondade e a justiça sem perder a bondade e a justiça.


Anule a engenhosidade e abandone o interesse

A engenhosidade e o interesse não são parecidos com o Taoísmo.

E não haverá mais ladrões nem roubos

As pessoas roubam e se portam como ladrões porque têm interesse e engenhosidade e quem tirar vantagem a mais.

Mestre Maa nos diz que:  Anular a engenhosidade e o interesse significa não perder o caminho do centro e o caminho da retidão.  Saber não perder o equilíbrio e não ser excessivo na capacidade mental.  Todos nós temos excesso de mental, isso é ruim.  Pensar é uma faculdade natural do ser humano mas pensar excessivamente traz a engenhosidade.  Portanto, é preciso saber não perder o caminho do equilíbrio.

Mestre Maa também nos diz que devemos saber resguardar a inteligência e aprender a nos mostrar menos brilhantes, meio bobos, até.  O real bobo não sabe; o sábio que se faz de bobo, sabe, mas fica com cara de bobo para resguardar pois assim não cultiva nem esperteza nem engenhosidade.

Para quem não cultiva a engenhosidade, naturalmente, as forças externas serão evitadas, os demônios externos não o invadirão.

Na vida cotidiana, às vezes somos atacados por forças invisíveis.  A melhor maneira de não sermos atacados é nos mostrar como bobos, para não sermos alvos.  Se não somos alvos, não podemos ser atingidos.  A pessoa de personalidade forte, torna-se um alvo.

Por essa razão, dentro do Taoísmo, os grandes mestres são singelos, discretos, não chamam a atenção.

Em outro Capítulo, Lao Tse nos diz que o homem iluminado, o homem sábio da antiguidade atravessa a floresta e não é atacado pelos animais ferozes.

Se formos atacados na floresta pelos animais  ferozes é porque somos muito evidentes.  A ameaça é Metal e a Comida é madeira.  Isso representa coisas que gostamos e não gostamos, a vida e a morte, criar e eliminar.

Em nossas vidas, quando adoramos algo, queremos possui-lo; e quando detestamos algo, queremos atacá-lo.  Isso é Yin e Yang, favorecimento e desfavorecimento, a vida e a morte.  Agimos com compaixão e amor e reagimos com ódio e repúdio.  É preciso, portanto, haver o discernimento que leva à bondade e à justiça.


Continuando, Ele diz:

Se essas três frases ditas não são o suficiente
Então faça com que se tenha o que se possa confiar


Temos que encontrar algo que se torne uma referência.  Essa referência pode ser um exemplo, pode ser uma doutrina.  Pode ser algo com uma linguagem mais explícita  - se apenas a linguagem simples não funcionar.


Encontrando e abraçando a simplicidade


Devemos procurar a simplicidade e abraçá-la.

Lao Tse parece querer nos dizer:  Se tudo isso que eu disse ainda não foi entendido, então procure uma referência mais fácil.  Procure abraçar o simples e não abraçar o que é complicado.

Portanto, devemos buscar a simplicidade e uma vez encontrada uma maneira simples de viver, devemos apegar-nos a isso e usar como referência para nossa vida.

Muitas vezes, recorremos à nossa memória e nos lembramos que em nossa infância nós reagíamos à vida com simplicidade.  Hoje não conseguimos mais aquela simplicidade.  É preciso recuperar essas memórias e começar a agir hoje novamente com aquela simplicidade da infância.


Reduzindo o egoísmo e diminuindo os desejos


Devemos reduzir, querer menos e não achar que somos o centro de todas as coisas.

Lao Tse nos diz que o  governante sábio é aquele que simplesmente faz o que deve ser feito e uma vez concluída sua obra, retirar-se não desejando reconhecimento nem querendo homenagens.  O governante sábio simplesmente faz e sai sem rancor, sem aquele sentimento de descontentamento por não ter sido reconhecido.

Dentre as pessoas que se afastam, que se retiram, encontramos o falso eremita.  O falso eremita é aquele que se sente magoado pela vida porque não foi reconhecido e homenageado.  Por isso, se afasta e despreza a sociedade.

O verdadeiro eremita faz as coisas como devem ser feitas e se retira ou quando a obra está concluída ou ainda sem que esteja concluída.  Se for um bom Taoísta, nem precisa ser lembrado porque simplesmente cumpriu sua tarefa, cumpriu sua parte.

A vontade de querer e de possuir torna a vida muito desgastante.

Se as coisas são difíceis de entender, então, simplesmente, devemos procurar agir de uma maneira mais simples, tentando ser menos egoístas, tentando ter menos desejos.

Simplicidade, menos egoísmo, menos desejos. 

Fazer as coisas, concluir as coisas e deixar as coisas sem querer reconhecimento.

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foto: Sítio das Estrelas, Janine

TAO TE CHING

O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE

Lao Tse, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 19
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Transcrição e Síntese de Aula Gravada na Sociedade Taoísta do Brasil,
Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 1994

Transcrição e Síntese de Janine Milward


A tradução dos Capítulos do Tao Te Ching foi realizada por Wu Jyh Cherng,
do chinês para o português,
 e foi primeiramente publicada pela Editora Ursa Maior,
sendo hoje  publicada pela Editora Mauad, São Paulo, Brasil

Nesta mesma Editora, encontra-se ainda no prelo
a realização da publicação, em breve, das interpretações de Wu Jyh Cherng
 acerca os 81 Capítulos da obra máxima de Lao Tse, o Tao Te Ching