Alcançar o valor é aproximar-se do não-elogio




TAO TE CHING
O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE
LAO TSE, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 39
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Transcrição e Síntese de Aula Gravada na Sociedade Taoísta do Brasil,
Rio de Janeiro, em 18 de abril de 1995



Capítulo 39


Esses adquiriram o Um na antiguidade:

O Céu adquiriu o Um e tornou-se transparente
A Terra adquiriu o Um e tornou-se tranqüila
O espírito adquiriu o Um e tornou-se desperto
Os vales adquiriram o Um e tornaram-se opulentos
Os dez mil seres adquiriram o Um e tornaram-se vivos
Os príncipes e os reis adquiriram o Um e tornaram-se o eixo do mundo
Esses alcançaram a supremacia.

O céu, não se tornando transparente, irá rachar
A terra, não se tornando tranqüila, irá temer estremecer
O espírito, não se tornando desperto, irá temer exaurir
Os vales, não se tornando opulentos, irão temer secar
Os dez mil seres, não se tornando vivos, irão temer se extinguir
Os príncipes e os reis, não se tornando nobres, irão temer a derrota.

Por isso,
O nobre utiliza a humildade como princípio
O alto utiliza o baixo como base.

Sendo assim,
Os príncipes e os reis denominam-se a si mesmos de órfãos, carentes e indignos
Isso seria utilizar a humildade como princípio, não seria?

Por isso,
Alcançar o valor é aproximar-se do não-elogio
Não desejando o vulgar como o jade
Sendo simples como a pedra.




A unidade é algo anterior à separação das coisas.

Na seqüência matemática dos números, depois do Zero vem o Um, depois vem o Dois, depois vem o Três, e assim por diante.

O Um é o primeiro número e ao mesmo tempo é o numero que representa a potencialidade de todos os outros números.

O Dois está dentro do Um.  O Três está dentro do Dois e o Quatro está dentro do Três e assim, todos os números estão dentro do anterior.

O número Um representa a potencialidade de todos os números.  Se os números representam a variedade dos seres, o Um representa a potencialidade de cada ser, em todos os seres.  E é também a soma de todos os seres.

Esse Um, por ser anterior à atualização, e por ser algo indivisível, pode ser considerado como algo espiritual e como algo material.  É um estado onde o espírito e a matéria não estão separados.  É um estado onde a consciência e a energia não estão separados.

Nós vivemos no estado dual, no estado do complexo, do múltiplo.

Todos nós temos normalmente uma polarização entre a consciência e a energia.  Ora é a energia desequilibrada que influencia nossa atividade mental e emocional, ora nossa alteração emocional e mental promovem uma transformação e uma modificação energéticas.

No estado do Um, no estado do indivisível, a Energia e a Consciência são a mesma coisa.

A Consciência é a própria Energia.  A Energia é a própria Consciência.

Esse estado do Um, do indivisível, é algo um pouco difícil de ser imaginado por nós.

Esse estado do Um é considerado neste Capítulo por Lao Tse como a raiz de todas as manifestações.  E Ele também considera a aquisição ou a existência desse Um em cada ser - ou a restauração - como a permissão de retornarem ao estado da naturalidade, de retornarem ao estado do  equilíbrio.

Ele diz:

Esses adquiriram o Um na antiguidade:

O Céu adquiriu o Um e tornou-se transparente
A Terra adquiriu o Um e tornou-se tranqüila
O espírito adquiriu o Um e tornou-se desperto
Os vales adquiriram o Um e tornaram-se opulentos
Os dez mil seres adquiriram o Um e tornaram-se vivos
Os príncipes e os reis adquiriram o Um e tornaram-se o eixo do mundo
Esses alcançaram a supremacia.

Esses versos são de plena simbologia. 


Desmembrando a primeira frase:

Esses adquiriram o Um na antiguidade

Antiguidade tem o sentido de ‘origem’, de fonte inicial.  Lao Tse diz que o Um é a fonte inicial.

O Um é a primeira manifestação.

A primeira manifestação do universo é a manifestação a partir da raiz do universo.

O que é a raiz do universo? 

É uma espécie de Vazio e não-existência.  É uma espécie de não-manifestação que permite a manifestação.

A primeira manifestação do universo é o Um.

E o Um veio do Zero.  O Zero é a raiz de todas as coisas.

O Um é  o princípio, o início.

o Um na antiguidade’ significa a manifestação do princípio.

No estado da manifestação do princípio, o Céu, a Terra, o Espírito, os vales, os dez mil seres, os príncipes e os reis conseguiram adquirir todas essas qualidades: a transparência, a tranqüilidade, o despertar, a opulência, a vida e o  eixo do mundo.

É bom lembrarmos que no estudo filosófico do Taoísmo, esse Princípio Inicial, o Um da antigüidade, o Um da raiz de todas as coisas, o princípio inicial da existência, não significa uma distância de tempo.  Ou seja, não significa um tempo atrás quando tudo teve começo.... Não.   Esse princípio inicial é um estado, é uma qualidade.

O Princípio Inicial pode ser encontrado em todas as épocas, em todos os momentos, em todos os lugares.  É um nível de consciência, é um estado do ser.  Cada ser, dependendo do nível em que está atuando, pode estar no estado do Princípio Inicial como no estado da multiplicidade, da complexidade.          

Quando a Consciência e a Energia se fundem, e a pessoa está atuando no estado do Princípio Inicial, estará vivendo a vida infinita. 

Quando a consciência e a energia não conseguem se fundir, e não existe o estado do princípio inicial, a pessoa está no nível da complexidade, da multiplicidade.

No estado da Consciência e da Energia fundidas - no estado do Princípio Inicial - não importa em que época seja, essa pessoa está vivendo no estado da infinitude onde o tempo e o espaço não podem limitar sua existência.

Quando a consciência da pessoa não está no princípio inicial e sim no estado da complexidade, da fragmentação - não importa qual a época que seja -, essa pessoa estará vivendo o estado das infinitas e inúmeras vidas e mortes.

O que é a vida?

O que é a morte?

Vida e morte são a ruptura, a rachadura, a separação.

O que é a vida infinita?

O que é infinitude?

Infinitude é algo que não pode ser rompido, partido.

Se a consciência de uma pessoa pode ser partida, essa consciência é uma consciência feita de início, durante e fim; início, durante e fim; início, durante e fim, com inúmeros fragmentos.

Quanto maior a complexidade, maior fragmentação.  Quanto maior fragmentação em nossa consciência, em nosso espírito, mais vida e morte existirão dentro de nós.

Quanto maior grau e maior quantidade de vida e morte dentro de nós, maior sofrimento pelo ganho e pela perda.

Fragmentação é ruptura, é não nos permitir desfrutar a totalidade das coisas.  Estamos sempre construindo algo e perdendo algo.  Dessa maneira, nunca sentiremos a plenitude, não importa em que, sempre sentiremos frustração, uma sensação de incompletude.

Essa sensação de incompletude nos traz incessantes ansiedades, inquietações.  E tudo isso é a semente que nos leva a entrar num ciclo vicioso de outras buscas, outras conquistas e outras perdas.

A cada passo que caminhamos para frente, ganhamos novo tempo e novos momentos ... mas, simultaneamente, estamos perdendo o antigo tempo e os antigos momentos.  Trabalhos ganhos, trabalhos perdidos.  Pessoas ganhas, pessoas perdidas.  Amizades ganhas, amizades perdidas.  Sentimentos ganhos, sentimentos perdidos.  Memórias renovadas e memórias perdidas...

Assim, em cada segundo, em cada minuto, em cada vida que reencarnamos e transmigramos, repetimos e vivemos na infinitude fragmentada.  Não temos consciência da infinitude da vida e da consciência e, ao mesmo tempo, sofremos a fragmentação da vida e da morte, dentro da infinitude.

Esse é o não-despertar do espírito, ou seja, a consciência não-despertada.

E Lao Tse diz:

O espírito adquiriu o Um e tornou-se desperto

O espírito é a Consciência, é a essência do nosso ser.  Quando a Consciência adquire o Um, quando nossa Consciência é o Um, é universal, é infinita, é indivisível, ela está despertada, iluminada...  porque, neste estado, nossa consciência, nosso Espírito, está em todos os momentos, em todos os lugares, em todos os corpos, em todas as épocas.  Não existe a fragmentação e sim existe a Unidade do ser.

Muitas vezes, no Caminho Espiritual - que é o Caminho da Consciência -, alguns mestres, através da realização, conseguiram alcançar um estado muito próximo dessa Unidade.  Essas pessoas conseguem ter uma consciência maior de sua infinitude do ser.  Como conseqüência, esses mestres desenvolvem capacidades acima das pessoas comuns, como as lembranças ou recapitulações de vidas passadas ou a premonição de vidas futuras.  Isso porque na infinitude da vida, todos os tempos estão no mesmo tempo.

A Iluminação de hoje faz com que toda nossa vida passada se ilumine e faz com que todas as nossas vidas futuras se iluminem.

Dentro do Taoísmo, acreditamos que uma pessoa que alcance a infinitude do ser, possa romper as barreiras do tempo e do espaço e possa transitar entre o passado, o futuro e o presente.  Isso porque a Consciência está na infinitude.  No momento em que se alcança a infinitude, não existe a palavra para interpretar essa infinitude.  A infinitude está além da linguagem.

A infinitude só pode ser interpretada pela própria infinitude.  A infinitude é uma espécie de silêncio, uma espécie de voz que não é partida (nossas palavras são partidas, sílaba após sílaba).  Nos mantras, os prolongados monossílabos são, de certo modo, o exercício de uma só palavra que vai para o passado, para o futuro e no presente é uma única voz.

Na prática mística, na meditação, num estado mais profundo, somos capazes de escutar o som da Unidade, a voz da Unidade.  A voz da Unidade é uma nota, que é infinita.

Acredita-ser ser possível que os mestres da antiguidade descobriram os mantras em forma de letras, não porque eles inventaram essa técnica, mas porque escutaram a voz da infinitude, o som da infinitude.  E o som da infinitude é constante.

O despertar traz a infinitude.

O que é o despertar?

É como pegar um bambu dividido por inúmeros nós e fazer um bambu sem nós, sem fragmentação.  A vida sem fragmentação é a vida da Unidade.

Inspirados no raciocínio da Unidade, no  Taoísmo não fazemos propriamente a separação entre filosofia, religião, ciência e conhecimento.  Um Taoísta usa um único sentimento para trabalhar a filosofia, a religião, a ciência e a vida cotidiana, em seus afazeres.  Não há a separação.  A separação das coisas é a fragmentação.

Na fragmentação, cada coisa pertence a seu lugar próprio, separada das outras.  Assim, vive-se uma maneira de se comportar, de sentir, de pensar, de ser.

No entanto, o Taoísmo reconhece que na vida cotidiana não se pode misturar as coisas.  Isso seria uma insensatez.  O que se diz é que, com uma única consciência todas as diferentes coisas são feitas diferenciadamente e ao mesmo tempo, com a Unidade do todo.



Voltando ao texto:

O Céu adquiriu o Um e tornou-se transparente
A Terra adquiriu o Um e tornou-se tranqüila

O Céu é a antítese da Terra.  O Céu é Yang e a Terra é Yin.

O Yang é movimento e o Yin, é quietude.

Quando o Yang, o movimento, adquire o Um, esse movimento é transparente.

Quando o Yin, a quietude, adquire o Um, essa quietude é tranqüila.  A quietude é a própria tranqüilidade.

No movimento sem o Um, não existe transparência.  A transparência é uma espécie de Vazio que permite todas as coisas fluírem.

O movimento é a própria fluidez das coisas.  No movimento, na fluidez, se houver transparência, tudo flui sem bloqueios.  Essa é a naturalidade.

Isso significa não agirmos intencionalmente para interferir nas coisas e assim permitir cada coisa fluir com sua naturalidade, com seu tempo e seu ritmo.  Significa não realizarmos a obra com segunda intenção, para beneficiar nosso ego, mas realizarmos cada coisa em cada momento, em cada situação, fazendo o que deve ser feito.

Dessa maneira, estaremos atuando e fazendo as coisas com uma transparência interior.  Essa transparência é um não-julgamento, um não-egoísmo.

A Terra é quietude, é Yin.  A Terra é aquela que sustenta os dez mil seres, todos os seres.  Não havendo a Terra, não haverá onde nos instalarmos.  Terra é morada, é residência.  Terra é nosso corpo, que abriga a alma.  A Terra precisa da Unidade para ter tranqüilidade.

O Espírito, a Consciência, precisa do Um, da Unidade.

Uma Consciência Una, uma Consciência universal é uma Consciência Despertada, Iluminada, é uma Consciência que não tem fronteiras, barreiras, é uma Consciência onde tudo está unido.

Esta consciência não é a personalidade de um ou de outro, não é uma mente ou uma idéia.  Esta consciência não é a soma de todas as idéias, não é a soma de todas as personalidades e sim esta Consciência é a não-personalidade, é a não-palavra, é o não-sentimento que permite cada sentimento, cada personalidade, cada pensamento fluir sem bloqueios.  É uma espécie de quietude interior, é um silêncio interior, é um Vazio.

Esse Vazio é revelado na quarta frase:

Os vales adquiriram o Um e tornaram-se opulentos

O vale entre montanhas, com um rio com muita água correndo, é o ‘vale opulento’.  Se o vale não estiver vazio como podem as águas percorrê-lo com opulência?  A água só pode correr num vale aberto, vazio.

Podemos aí associar a palavra Vazio com o Um.

Se o Um fosse um bloco de concreto, certamente bloquearia as águas que não poderiam ter a opulência.  Esse Um é o Vazio, um espaço.  Espaço no sentido metafórico, é a abertura da consciência, é o Vazio na Consciência, é o silêncio, uma quietude.

Quem tem a mente silenciosa pode ouvir e pode ver.  Quem tem a mente espaçosa pode aprender e assimilar.

Quem tem mente fechada e barulhenta, não consegue ouvir ou absorver.

Silêncio é análogo ao Vazio, ao espaço, à quietude, ao Um.

Assim, podemos rever as três primeiras frases:

Quando o céu adquire o Um, o espaço, torna-se transparente.
Quando a terra adquire o espaço, torna-se tranqüila.
Quando o espírito encontra o Um, torna-se despertado.
Quando o vale encontra o Um, torna-se opulento.

É preciso esvaziar para poder receber.  É preciso renunciar para conquistar ou adquirir.


O Um não é exatamente igual ao Zero.

Um é Um.
Zero é Zero.

O Um está dentro do Zero.  E o Zero abraça o Um.  Mas o Um não é a soma de todas as formas, é algo criativo e vital que existe dentro de todas as formas.  É o Hexagrama Criativo do I Ching - é algo criativo e vital porém não tem imagem nem forma.  Está em toda a parte, dá sentido a todas as coisas mas não é nenhuma coisa propriamente.  É invisível porém ativo.

Qual é então a diferença entre Zero e Um?

Zero é uma Consciência em estado de quietude, e que, aparentemente, não se manifesta.

O Um é algo em quietude e que, aparentemente, se manifesta.

O Um é uma manifestação da quietude.

O Zero é uma quietude da manifestação.

Com o Um dentro do Zero e com o Zero dentro do Um, vivemos o Céu Anterior e o Céu Posterior ao mesmo tempo.  Viver o Zero e o Um ao mesmo tempo.  Vivemos o Wu Chi e o Tai Chi ao mesmo tempo.  Vivemos o Tao do Céu Anterior e o Tao do Céu Posterior ao mesmo tempo.

Essa é a plenitude do ser.


Os dez mil seres adquiriram o Um e tornaram-se vivos
Os príncipes e os reis adquiriram o Um e tornaram-se o eixo do mundo

Príncipes’ representam a manifestação da Consciência.  ‘Reis’ representam a Consciência em si, a natureza e a sua manifestação.  Todas as coisas têm uma potencialidade e essa potencialidade pode estar manifestada. 

Rei representa a Consciência Pura.  Príncipe representa a Consciência manifestada, revelada.

Tanto no estado da Consciência Pura como no estado da Consciência manifestada - adquirindo o Um -, nós podemos ser o ‘eixo do mundo’, podemos ter todas as coisas girando em torno de nós, naturalmente.

O rei é a natureza e o príncipe é a manifestação dessa natureza.


A água por si mesma é água e a água como bebida é uma outra expressão.  A água como água é apenas água.

A Consciência por si mesma é como a água: essa mesma Consciência - sem deixar de ser consciência - serve como néctar da vida.

A Energia Vital em si mesma é como a água e essa energia vital que faz com que os seres se  tornem vivos, é um néctar da vida, é a bebida.

Na essência das coisas, a água que bebemos e a água que não bebemos são a mesma coisa.

Na manifestação das coisas, a água que não bebemos e a água que bebemos, são duas coisas.

Não bebendo a água, a água continua sendo água - adquirimos a vida.

Bebendo a água e não bebendo a água, a água continua sendo água.  Ou seja, a natureza da Consciência é a mesma.  A utilização  dessa mesma Consciência é o que faz com que haja um outro sentido.

O rei é, simbolicamente, a Consciência como natureza da Consciência.

O príncipe é a manifestação ou a utilização dessa Consciência.

O rei é a água por si e o príncipe é a água como bebida.

Reis e príncipes são nobres, ou seja, a natureza é igual.  Porém, a utilização ou não é que faz com que se tornem diferentes.  Mas, ao mesmo tempo, não são diferentes.

Quem precisa beber a água, é diferente.  Não é que a água seja diferente da bebida mas sim que nós bebemos ou não a água - isso é que faz com que a água e a bebida sejam diferentes.

Quando não bebemos a água, essa água é diferente para nós.  Quando bebemos a água, a água é a mesma coisa.

Água que está dentro de nós e água que está fora de nós, é a mesma água.

Quando não bebemos a água, a água está fora de nós e essa água faz com que nós e a água sejam diferentes.

Aquele que se inspira no Um, que se unifica com o Um, o Um que está fora e o Um que está dentro é o mesmo Um.

Esse Sopro Primordial, esse Espírito Primordial que está dentro, que está fora de nós, que está em todas as coisas, em todos os seres, é o mesmo Espírito e é o mesmo Sopro.  Se o bloquearmos, nós o tornamos diferente de nós.

A isso Lao Tse chama de ‘alcance da supremacia’:
          
Os dez mil seres adquiriram o Um e tornaram-se vivos
Os príncipes e os reis adquiriram o Um e tornaram-se o eixo do mundo
Esses alcançaram a supremacia.




O céu, não se tornando transparente, irá rachar
A terra, não se tornando tranqüila, irá temer estremecer
O espírito, não se tornando desperto, irá temer exaurir
Os vales, não se tornando opulentos irão temer secar
Os dez mil seres, não se tornando vivos irão temer se extinguir
Os príncipes e os reis, não se tornando nobres irão temer a derrota.


Aqui Lao Tse nos mostra a importância de adquirir a Unidade.

A terra, não se tornando tranqüila, irá temer estremecer

A terra não se tornando tranqüila’ - Em chinês, pronuncia-se ‘tranqüila’, com o mesmo som de coagulada e solidificada.

Quando a terra não é sólida, não é tranqüila.  Terra sólida é uma terra tranqüila.  Sem tranqüilidade, ‘irá estremecer’.  Estremecer significa que surgirão desastres, terremotos, tempestades, alterações do ambiente.


O céu, não se tornando transparente, irá rachar

Olhando para o céu e não vendo a transparência - porque está coberto de nuvens -, isso é sinal de tempestade.  A tempestade traz o raio e assim, não parece que o céu se racha?


O espírito, não se tornando desperto, irá temer exaurir

Quando o espírito não é transparente, não é despertado, ele irá se ‘exaurir’, se fragmentar, cansar.

O Espírito é a Consciência.  Quando a Consciência não consegue a integridade e começa a se fragmentar, fica cansada, vai viver muitas personalidades e muitos seres dentro de si.  Cada vez mais eus.  Isso cria uma grande confusão, isso é a fragmentação.

Quando o Espírito não consegue despertar para esta Unidade - essa compreensão da inseparabilidade, essa consciência de tudo que é o Um e consegue sentir isso -, então se vive a fragmentação, entra-se em contradição.

O que é fragmentação?

É o Yin oposto ao Yang.

É a contradição, um discordando do outro.  Ora o Yin e o Yang se aproximam, ora se separam.  Ora estamos de acordo conosco, ora estamos em desacordo.  Esse eu contra o outro eu, é a fragmentação.

Se o eu e o outro somos Um, isso é a Unidade.


Os dez mil seres, não se tornando vivos, irão temer se extinguir

Quando a humanidade não percebe que todos os seres - apesar das diferentes aparências - são uma só coisa, inicia-se a fragmentação, a contradição onde uns se aliam com outros contra terceiros.  Em todos os momentos, estão se aliando e se separando, encontrando e desencontrando.

Essa fragmentação pode levar a humanidade à sua extinção, à sua morte.

Quando a humanidade perde a sua consciência coletiva, quando o espírito coletivo é partido, é a morte da humanidade.  A espécie humana chegará à extinção se um dia vier a perder a sua consciência coletiva.  E todas as almas transmigrarão para estados menos desenvolvidos.


Os príncipes e os reis, não se tornando nobres, irão temer a derrota.

Quando a natureza de nossa consciência e a manifestação de nossa consciência não são nobres, temos que temer a nossa derrota, ou seja, o não-alcance de nossos objetivos.

A natureza de nossa consciência precisa ser nobre.

O que é nobre?

É o Uno, o indivisível.  A Consciência precisa ser nobre, íntegra, verdadeira, autêntica, real.

Tanto a manifestação do Yang precisa ser transparente para não haver tempestade quando a manifestação do Yin precisa ser sólida para não estremecer.


Os vales, não se tornando opulentos, irão temer secar

Nosso espírito precisa ser iluminado para não entrar em fragmentação.  Nosso coração precisa ser aberto como um vale para permitir a vida fluir e não restringir a fluidez da vida - se não, nos tornaremos estéreis.  A vida precisa ser fértil e, para isso, precisamos ter espaço aberto dentro de nós.  É uma aceitação, uma abertura para que as coisas possam acontecer em nossa vida.

O que é bloqueio?
O que significa concretar um vale para impedir a água de correr?

É não abrir espaço para a vida fluir.  Isso é a não aceitação das coisas.

Normalmente, temos dificuldade em aceitar as coisas em nossa vida.  Criamos os apegos, fazemos julgamentos, não queremos aceitar as coisas desagradáveis e não nos desgarramos das mágoas, dos sofrimentos.   Assim, a vida não flui.

Devemos deixar a vida fluir por nós como um vale deixa a água fluir.  A água que não flui é uma água estagnada, morta, apodrecida.

O apego é nos agarrar a algo que deveria ser passageiro.  Porque tudo na vida é passageiro.  O rio, o vale, a água é passageira, tudo está em constante transformação.  Também a vida.  Se nos agarrarmos a algum momento da vida e não o deixarmos ir embora - algo agradável ou não  -, não estaremos sendo como o espírito do vale que deixa tudo fluir.

Lao Tse nos diz para nos desapegarmos e abrirmos espaço para a vida.

Temos que ter a consciência da Unidade, onde tudo é um só, íntegros em tudo o que somos e no que fazemos.


Em seguida, Ele diz:

Por isso,
O nobre utiliza a humildade como princípio
O alto utiliza o baixo como base.

Sendo assim,
Os príncipes e os reis denominam-se a si mesmos de órfãos, carentes e indignos
Isso seria utilizar a humildade como princípio, não seria?


A Unidade na metafísica é um Vazio que está em toda a parte.  Assim, não nos parece difícil vivê-la?  É tão Absoluta, tão infinita...

No entanto, Lao Tse nos diz que é fácil começar a encontrar essa Unidade.  Através da HUMILDADE, em saber se colocar embaixo, assim como o vale.  E assim, o Vazio - por não se apegar às coisas -, permite que tudo aconteça dentro dEle.

Por isso, Ele diz:
O nobre utiliza a humildade como princípio

Justamente por ter a humildade como base, é que ele pode ser nobre.

O alto utiliza o baixo como base.

Tudo o que é alto, começa pelo chão.

Lao Tse, em outro Capítulo, nos diz:

Uma torre de nove andares começa pelo chão.

Se nos colocarmos sempre no chão, teremos algo a acrescentar acima de nós, podemos sempre crescer.  Se já começarmos de cima, nada poderemos acrescentar.


Sendo assim,
Os príncipes e os reis denominam-se a si mesmos de órfãos, carentes e indignos
Isso seria utilizar a humildade como princípio, não seria?

Antigamente, na China, os príncipes e os reis se chamavam de ‘órfãos, carentes e indignos’.

Quando discursavam, diziam:  “Aqui está a palavra de seu indigno governante”.  Eles se colocavam numa posição de humildade.  Mais tarde, isso aparentemente virou hipocrisia.

A idéia inicial é a pessoa ter consciência que não é perfeita.  Assim como os reis e príncipes têm a consciência de serem indignos do poder, carentes (para merecer as riquezas), porque é preciso antes ter riqueza de espírito para merecer a riqueza material.


Isso seria utilizar a humildade como princípio, não seria?

Lembremos do início do texto, quando dizíamos que encontrar o ‘Um na antiguidade’ é exatamente a Unidade do Princípio, o Princípio Inicial.

O que é o Princípio Inicial?

Princípio Inicial na vida de uma pessoa é a humildade.

Lao Tse neste Capítulo nos dá um ensinamento bastante prático.

No Taoísmo, devemos viver o Vazio, ter a quietude interior, não-julgar.

Como viver isso?

Vivendo a prática diária da humildade.

Se conseguirmos ser humildes em cada coisa que fazemos, em cada momento de nossa vida, já estaremos praticando a vivência do Princípio.  Porque o Princípio é humilde.  Princípio é o Um.  O Um é o número que tem menos números.  O Zero é a ausência do número.  O Um é o menor número de todos os números e por isso mesmo, ele é o princípio de todos os números.  Por ser o menor número de todos os números, é o número que contém potencialmente todos os números.

Aquele que é humilde, é potencialmente possuidor de todas as coisas.

Aquele que é humilde é o menor de todos sendo o maior de todos.

Por isso, Lao Tse diz que a humildade é a vivência do Princípio.

Vivência do Princípio, vivência do Um, da Unidade.  Vivência do Vazio, da não-existência, do não-julgamento, do desapego.

Para se desapegar, tem que ter humildade.
Para não fragmentar, tem que ter humildade.
Para ter espaço, tem que ter humildade.
Para permitir que as coisas fluam na vida, tem que ter humildade.


Por isso,
Alcançar o valor é aproximar-se do não-elogio

Uma pessoa que tem  valor, não se vangloria, não busca elogios, não busca o valor.  Não-elogio significa não-valor.

Uma pessoa que busca o valor, busca a multiplicação, a complexidade.

Não-valor / não-elogio é o silêncio, é a não-palavra.  É simplesmente a humildade para fazer as coisas da vida, concluir a obra sem precisar ser lembrado, sem precisar de reconhecimento.  Simplesmente viver a vida em seu curso e, terminando a obra, se retirar e ser esquecido.

Esse é o caminho anônimo de Lao Tse.  E justamente por isso, por não precisar ser lembrado, nunca será esquecido.

Tudo o que precisa ser lembrado, pode ser esquecido.  O que não precisa ser lembrado, não será esquecido.  Não será esquecido porque está presente como o céu, como a terra, como a natureza que está em toda a parte.  E porque está em toda parte, não é preciso se lembrar de sua existência - e nunca será esquecido.

Isso é viver o Um como uma potencialidade criativa que está em todos os seres, que está em toda parte, que nunca será esquecida e nunca será lembrada.

Simplesmente criar, desenvolver, concluir a vida e se retirar imperceptivelmente.


Não desejando o vulgar como o jade
Sendo simples como a pedra.


Lao Tse  nos aconselha a não buscarmos o valor do jade, preferindo ser a pedra.

Tudo o que julgamos como valioso, no fundo, não tem valor.  O ouro tem valor mineral e medicinal como ouro, como o ferro, como o bronze, mas todos são simplesmente ouro, ferro, bronze, com suas próprias naturezas.  O valor, no entanto, é apenas uma ilusão que criamos.

Com essa compreensão, a vida pode se tornar simples.   Não precisamos desejar o jade desprezando a pedra do rio - porque tudo é a mesma coisa.  Nós é que criamos um valor ilusório, de fantasia, para um e para outro.

Viver a simplicidade, viver a humildade, é saber ver as coisas como elas são.

A pedra do rio é valiosa para fazer um muro ou construir uma casa.  E não é menos valiosa porque não é jade.  E jade nem sempre serve para construir uma casa...  Jade serve para jade e pedra serve para pedra.  Ambos são valiosos em sua própria natureza.  Quem não tem valor, apenas é.  Apenas é como é.

Lao Tse nos fala para vivermos com simplicidade, vivermos com naturalidade, vivermos com desapego, vivermos com humildade.  Humildade como um sentimento.  Humildade como uma maneira de encarar a vida.

Viver humildemente é viver com simplicidade.  É não precisar de luxo e poder viver com luxo - sem precisar dele.

O problema é ‘precisar’.

Precisar é se apegar a algo que não nos permite fluir, que não permite a vida acontecer.


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foto: Sítio das Estrelas, Janine


TAO TE CHING
O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE
Lao Tse, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 39
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Transcrição e Síntese de Aula Gravada na Sociedade Taoísta do Brasil,
Rio de Janeiro, em 18 de abril de 1995

Transcrição e Síntese de Janine Milward

A tradução dos Capítulos do Tao Te Ching foi realizada por Wu Jyh Cherng,
do chinês para o português,
 e foi primeiramente publicada pela Editora Ursa Maior,
sendo hoje  publicada pela Editora Mauad, São Paulo, Brasil

Nesta mesma Editora, encontra-se ainda no prelo
a realização da publicação, em breve, das interpretações de Wu Jyh Cherng
 acerca os 81 Capítulos da obra máxima de Lao Tse, o Tao Te Ching