Esvaziar-se permite o Preenchimento

Esvaziar-se permite o Preenchimento

TAO TE CHING
O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE
LAO TSE, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 22
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Capítulo 22

Curvar-se permite a plenitude
Submeter-se permite a retidão
Esvaziar-se permite o preenchimento
Romper permite a renovação
Possuir pouco permite a aquisição
Possuir muito permite a ganância.

Por isso, o Homem Sagrado abraça a Unidade
Tornando-a modelo sob o céu
Não julga por si, por isso é óbvio
Não vê por si, por isso é resplandecente
Não se vangloria, por isso há realização
Não se exalta, por isso cresce
Só por não disputar, nada pode disputar com ele

Antigamente se dizia: “Curvar-se permite a plenitude”.
Como poderiam ser palavras vazias?

Assim, ao alcançar a plenitude, encontra-se o retorno

Este Capítulo expressa tipicamente o pensamento e o comportamento do Taoísmo:

saber se submeter
saber se esvaziar
saber romper
saber possuir pouco

... Essas são exatamente as maneiras taoístas de viver e de ver as coisas.

Pode-se então entender que essas maneiras sejam contrárias a aquilo que se chama de ‘vitória’ ou ‘glória’. Normalmente, os valores sociais falam da pessoa que não se curva diante de nada, da pessoa que não se submete a nenhum pensamento disciplinar ou a nenhuma ordem social - isso é que é interessante para a sociedade.

O contrário do vazio é tê-lo preenchido, é possuir muitas coisas, ficar cheio de conhecimentos, cheio de dinheiro, cheio de riquezas, cheio de idéias e possuir muito: tudo isso expressa o valor comum das coisas.

Mestre Maa nos diz em suas aulas que dentro da cultura chinesa, se não existissem os ensinamentos de Confúcio, não haveria a ordem para governar o mundo; e se não existissem os ensinamentos de Lao Tse, não haveria onde os grandes heróis se aposentarem.

O Confucionismo é um ensinamento muito dogmático, muito voltado para a sociedade, voltado para o mundo. Através desses ensinamentos, uma pessoa pode chegar ao auge de sua realização, de se tornar uma pessoa realizada. Mas, por outro lado, será uma pessoa muito exteriorizada. Isso leva a pessoa a ir cada vez mais subindo na sociedade e chega uma hora que fica tão evidente e tão desgastada que não tem mais fôlego para sair dessa situação - mesmo porque seu ego não permitiria, seus ensinamentos e sua formação não permitiriam. Então, essa pessoa ou se destrói ou desiste. Mas também não pode desistir porque a sociedade chamaria de covardia, de abandono, de exílio. Significaria uma série de razões que normalmente o Taoísmo considera como ‘virtudes’.

Nesse caso, se não tivéssemos os ensinamentos de Lao Tse, chegaria uma hora em que os grandes heróis não teriam onde se aposentar. Chega uma certa hora em que temos que nos retirar. Não existe um progresso constante sem retiro. Não existe uma ascensão sem descida. Ao invés de o homem buscar seu progresso constante e sofrer uma queda involuntária - por essa mesma razão -, é melhor que ele saiba se retirar na hora própria de se retirar e avançar no momento próprio de avançar.

Isso é o que Lao Tse chama de Curso do Céu ou Caminho do Céu. O Caminho do Céu é o caminho da natureza. Existe o momento em que o sol nasce, existe o momento em que o sol chega ao meio dia, existe o momento em que o sol se põe, e existe o momento em que o sol desaparece e nós entramos em repouso e ficamos quietos, dormindo. Existem períodos quando nós dormimos mais e ficamos menos tempo acordados - no inverno. Existem períodos quando dormimos menos e ficamos mais tempo acordados - no verão. Tudo isso acontece dentro da grande lei do planeta. No verão, a energia da natureza está mais exteriorizada, a energia sai debaixo da terra e fica flutuando no espaço. Assim, o homem fica mais tempo acordado sem perder energia e recebendo a energia da natureza sem se prejudicar. Durante o inverno, existe menos tempo do dia e menos tempo de recebimento da energia e por ser noite por um longo tempo, a energia fica retida dentro da terra e então temos que repousar mais para não gastarmos energia.
O caminho da natureza é o Caminho do Céu: o caminho do dia e da noite, do movimento das estrelas, do sol e da lua.

Quem conhece o Caminho do Céu conhece o processo da mutação que nos fala o I Ching. Todo o momento Yang traz um momento Yin, depois da ascensão vem a queda, toda expansão traz um recolhimento, depois do momento Yang vem o momento Yin.

Se uma pessoa apenas valoriza o lado Yang e não valoriza o lado Yin, ela não saberá se recolher e não saberá se calar e não saberá viver o silêncio, não saberá se interiorizar, não saberá abaixar a cabeça e se retirar. Daí então esse grande herói não saberá a hora de se retirar e por isso será marcado pelo destino porque a grande roda não espera... É como um vulcão que ameaça explodir e deixar sua lava cobrir toda a aldeia - que deve então se retirar. Se alguém se recusar sair, será coberto pela lava, queira ou não queira.

Saber se retirar é como Lao Tse diz: saber curvar-se, saber submeter-se, saber esvaziar-se, saber romper e saber possuir pouco.

Nesse caso, os ensinamentos falam do não-herói. Para o Taoísmo, o não-herói é o verdadeiro herói.

Curvar-se permite a plenitude

Saber curvar-se é saber ter a maleabilidade. Movimentos de curva são movimentos circulares e espirais. A água demonstra a qualidade de saber curvar-se.

Saber curvar-se pode acontecer em vários níveis. Deve-se se saber curvar-se sem hipocrisia mas com humildade - saber ser humilde. Em outro sentido, pode ser literalmente o sentido de curva: a água pode fluir em linha reta como pode contornar rochas - a trajetória do leito do rio é toda de movimentos circulares. Também a energia em nosso corpo se movimenta em forma circular.

Curva, portanto, se entende por humildade, maleabilidade, adaptabilidade, movimento circular e movimento em espiral.

Na prática da meditação, quando se atinge um certo nível de quietude, com o corpo bem relaxado, podemos sentir a entrada de uma energia dentro de nosso corpo. Essa energia vem de uma fonte desconhecida que é o Vazio e quando ela entra em nosso corpo, começa a circular em forma espiral, ou seja, são movimentos curvos e não são movimentos retos. São inúmeras energias que geram infinitas rodas de moinho dentro de nós. Isso é exatamente o que Lao Tse diz: Curvar-se permite a plenitude.

Mestre Maa nos fala de uma frase retirada de um outro texto clássico não especificado por ele, que diz assim: “A curva tem o poder de criação. A criação tem o poder da formação”. Ou seja, quem sabe curvar-se e ter energias circulares, tem o poder de criar. As curvas são criativas. As retas, não. A força circular é criativa.

Continuando Mestre Maa: “E a criação pode gerar formas” - pode então materializar as coisas. “As formas tornam as coisas visíveis”. Quando uma coisa adquire uma forma, ela passa a ser visível.

“A visibilidade permite a iluminação” - tudo o que é visível torna-se claro e compreensível. “A iluminação pode proporcionar o movimento” - porque tudo o que é visível demonstra seu movimento. “O movimento traz a modificação e a modificação traz a transformação”.

“A curva tem o poder de criação
A criação tem o poder da formação
E a criação pode gerar formas
As formas tornam as coisas visíveis
A visibilidade permite a iluminação
A iluminação pode proporcionar o movimento
O movimento traz a modificação e a modificação traz a transformação”.

Dessa maneira, coloca-se, passo a passo, através da sabedoria do uso da palavra curvar-se, o entendimento de que pode ser usada nos níveis da adaptabilidade, da maleabilidade e da humildade bem como a utilização da força circular, da energia em espiral e em constante movimento que pode gerar a força da criação. Essa força da criação pode gerar uma forma.

Uma pessoa que tenha humildade pode criar, pode ser criativa e essa criatividade pode trazer à tona alguma forma, um projeto, uma idéia ou uma intenção de fazer alguma coisa e essa forma pode se tornar visível. Por tomar uma forma visível, esta criação fica iluminada para esclarecer e iluminar a própria pessoa que a criou ou pode também iluminar e esclarecer outras pessoas. Gera, portanto, uma movimentação e essa movimentação vai se transformando porque tudo o que se move, se modifica. Através da movimentação, vem a transformação.

Portanto, uma iniciativa feita com humildade e com maleabilidade - tanto mental como física - pode girar gradualmente até atingir uma grande transformação.

A partir de um cerne interior, pode-se chegar a uma transformação pessoal ou social. Pode-se começar de um nível espiritual até alcançar o nível físico de transformação quando muda a expressão física, muda a saúde, a transformação vai se exteriorizando passo a passo. Partindo de uma pessoa, a transformação pode atingir a sociedade e todos participarem da transformação, conjuntamente.

Mestre Maa, em seu raciocínio, nos coloca a importância de todo esse trajeto que se inicia na importância de se reconhecer a palavra ‘curvar-se’.

Na prática da Alquimia, temos as Rodas de Moinho que são a entrada do Sopro do Céu Anterior que vai purificando nosso corpo. As Rodas de Moinho têm que acontecer pelo menos nove vezes - em algumas pessoas acontecem mais vezes. É preciso que haja no mínimo nove entradas das Rodas de Moinho para permitir no corpo a concentração do Elixir que é uma força espiritual e energética. Para consolidar essa força espiritual e energética, precisamos ter essas Rodas de Moinho circulando dentro do nosso corpo pelo menos por nove vezes. Menos de nove vezes, não traz a capacidade total de coagulação para a concentração do Elixir.

Submeter-se permite a retidão

Submeter-se - Mestre Maa nos diz que é como ‘o Espírito que se submete ao movimento do Sopro’.

Se a primeira frase - Curvar-se permite a plenitude - pode ser entendida como o movimento do Chi, o movimento da Energia, a segunda frase - Submeter-se permite a retidão -, pode ser entendida como o Espírito que se submete ao Sopro.

O que fazemos em nossa prática de meditação? Colocamos a Consciência dentro do Sopro. Mas o Sopro é estático. O Sopro tem vários níveis. No nível mais denso é o ar da nossa respiração. O Sopro em nível mais sutil é a energia que circula em nossos meridianos e em nossos vasos energéticos. E ainda num nível mais sutil, é chamado de Sopro do Céu Anterior, que é uma energia que está além da consciência física e energética. São esses, portanto, os três níveis do Sopro.

Ainda existe um quarto nível que é o Sopro do Céu Anterior do Céu Anterior - que é uma energia fóra de nós.

Na prática mística do Taoísmo, nós colocamos a Consciência dentro do Sopro. Como o Sopro está em constante movimento, a Consciência vai se movimentar naturalmente junto com essa Energia. Daí, se entra nas Rodas de Moinho, na viagem das Rodas de Moinho. No entanto, é preciso sempre haver movimento. Quando o Sopro pára, a Consciência também pára. Por isso, na prática da meditação existe um estado que é chamado de ‘Estado de Fixação’.

A Fixação é o momento quando a respiração pára e o pensamento pára. Como a Consciência se submete ao movimento do Sopro, se este pára, a Consciência pára também. Nesta hora, se alcança um estado de serenidade absoluta, uma quietude absoluta, quando a Consciência não fala, não pensa, não sente, não faz nada. Porém, a Consciência não está apagada, está viva de uma forma transparente e quieta. De repente, se percebe que tudo o que existe no movimento do mundo pára. Naquela hora, entra-se no Estado Zero, no estado da absoluta quietude. Esse é o estado da Fixação.

Curvar-se é saber ter humildade, saber ter adaptabilidade, maleabilidade. Submeter-se é saber fluir, saber acompanhar, submeter-se aos movimentos naturais do mundo, saber seguir o grande fluxo da energia do destino.

Uma pessoa que caia numa correnteza forte de um rio e não sabe nadar, o que tem que fazer? Tem que relaxar e fluir com o movimento da água.

Devemos saber fluir com o nosso destino individual e devemos saber fluir com o destino coletivo e devemos saber nos submeter ao destino próprio pessoal. A pessoa que é capaz de seguir e fluir conforme o movimento cósmico, não mais precisa se preocupar com o destino social ou individual - porque ela estaria atuando acima dessas questões. Podem guerras, matanças, nascimentos, mortes, renascimentos, destruição, ascensão e queda acontecer.... e tudo passa.... mas o sol e a lua, o vento e a chuva sempre se repetem. Quando a pessoa está sintonizada com as leis do céu - com o Caminho do Céu -, ela é capaz de se colocar acima dessas leis sociais, podendo, portanto, escapar do Karma social.

Também quando a pessoa consegue acatar bem o seu Karma social, ela consegue fazer com que o seu Karma pessoal não seja tão evidente. Se uma pessoa consegue acatar o Karma pessoal, ainda tem o risco de ser esmagada pelo Karma social. Se a pessoa consegue adaptar-se ao Karma social, ainda pode ser esmagada pelo próprio destino cósmico - porque os Karmas social e individual têm que seguir de acordo com as leis cósmicas.

Hoje em dia, o ser humano está cada vez mais contra a natureza, gerando um destino pessoal e social contrários às leis cósmicas.

É preciso saber transformar: sair do nível do Karma para entrar no nível do Dharma, sair da causa e do efeito pra entrar no nível da sabedoria. A sabedoria está acima da causa e do efeito.

Portanto, falávamos do saber curvar-se, possuir pouco, esvaziar-se e não levar as coisas aos extremos. A consciência ecológica é um processo de saber não possuir muito. Nós consumimos demais. A sociedade humana é extremamente consumista. As florestas, os minérios - consumimos tudo o que existe na Terra. E com esse consumismo desenfreado, um dia não teremos mais saída porque tudo será esgotado.

A sabedoria é saber fluir na vida, consumindo apenas o necessário. Isso é um conceito taoísta: não consumir até o máximo para que a sociedade sempre tenha tempo e dê tempo para a natureza se reciclar e se refazer.

Também em pequena escala, devemos pensar da mesma maneira: quando comemos, devemos ingerir apenas 70 por cento da comida, para darmos espaço suficiente para o estomago realizar seu trabalho sem se exaurir.

É preciso que se entenda que tudo o que atinge seu máximo, se desbalança e vira de lado.

Saber se curvar e se submeter significam saber se adaptar e fluir.

Submeter-se permite a retidão - buscar o equilíbrio. É preciso saber buscar a adaptabilidade para se ser pleno. Quem estuda o I Ching sabe disso. Muitas vezes, no I Ching, tanto Confúcio como o Rei Wen falam: para se manter a integridade pessoal, muitas vezes, devemos saber nos curvarmos e saber nos preservarmos. A insistência, a rigidez e a possessividade apenas nos levam ao infortúnio.

O culto afro-brasileiro, por exemplo, teve que se submeter ao catolicismo, no Brasil. Houve um sincretismo entre os orixás e os santos. Naquela época, se os negros que aqui chegaram não se curvassem e se submetessem, poderiam ser massacrados por completo - nada teria sobrado de sua cultura e de suas raízes.

Por um lado, é preciso curvar-se... mas, por outro lado, se preserva aquilo que é preciso ser preservado. A maleabilidade é uma sabedoria.

Também para as outras culturas e religiões, aconteceram épocas quando era preciso o curvar-se e o submeter-se. Hoje, o Taoísmo já não mais precisa fazer isso porque se vive numa sociedade mais aberta. Não tão aberta para sairmos às ruas com megafones... É preciso saber se curvar e se submeter às circunstâncias. E todas as circunstâncias são temporárias. Vive-se de uma maneira em uma época e em outras épocas, vive-se de outra maneira.

Aparentemente, submeter-se a uma regra, a uma força externa, parece ser uma perda de identidade ou uma perda de virtude. Na verdade, é uma sabedoria saber preservar algo que deve ser preservado.

Esvaziar-se permite o preenchimento

Se quisermos encher de água um copo, é preciso que este copo esteja vazio. É preciso que haja a abertura do vale para que os rios e riachos possam adentrar e formar um grande rio, com correnteza. É preciso que haja um vazio na planície para que ela se torne um oceano ou um lago.

Igualmente, é preciso haver um esvaziamento mental e físico para que possam entrar dentro de nós uma Consciência pura e uma Energia pura como a água que entra dentro do corpo.

Na prática espiritual do Taoísmo, o que fazemos quando meditamos? Esvaziamos o corpo. O que é esvaziar o corpo? É relaxar o máximo possível tentando não colocar a atenção em nosso corpo físico. Devemos manter a coluna reta e esquecer o corpo. Depois, vem o esvaziamento mental, o que significa não ficar pensando em mil coisas. Coloca-se a atenção no silêncio interior. Dessa maneira, o corpo se esvazia, a mente se esvazia e nos tornamos um recipiente oco.

A partir daí, o Sopro do Céu Anterior pode entrar dentro de nós.

O Sopro entra por diversos caminhos: pode entrar pelos terminais dos canais de energia; pode entrar pela própria respiração. Como temos um fluxo de respiração muito intenso, no nosso trabalho, colocamos a concentração na respiração. Entrando e saindo o ar, esvaziando a mente, esvaziando o corpo. Assim, o Sopro entra em nós com grande facilidade e isso vai nos renovar psiquicamente e fisicamente.

Num nível mais rasteiro, esvaziar pode significar anular os preconceitos, anular os pensamentos insistentes de forma que nós possamos aceitar melhor as coisas.

Vazio significa aceitação. Se não tivermos um vazio interior, nada cabe dentro de nós.

Conta-se uma história de que um grande mestre intelectual confuncionista foi procurar Mestre Lao Tse para conversarem. Chegou à casa do Mestre já todo preparado para defender suas idéias e atacar o Taoísmo. Chegou tão preparado que o Mestre percebeu e pediu a um discípulo seu para servir o chá. Quando o chá estava pronto sobre a mesa e a xícara diante do convidado, o mestre pegou o bule e começou a derramar o chá dentro da xícara e foi derramando, derramando até que o líquido começou a transbordar copiosamente e o convidado ficou meio desesperado e gritou : “Pare, pare, pare, não vê que a xícara já está cheia?” Ao que o Mestre respondeu: “Pois é. Quando a xícara está cheia, não cabe mais nada”. Com isso, fez o convidado entender que ele havia chegado a aquela casa tão armado, tão cheio de conceitos para discutir, que não cabia mais nada em sua cabeça.

Também encontramos alunos que chegam às aulas com as mentes já tão cheias e tão armadas que não conseguem aprender nada.

É preciso haver o Vazio para poder haver o preenchimento. Se quisermos receber alguma coisa, temos que estar vazios por dentro.

No nível da Alquimia, se quisermos receber o Sopro do Céu Anterior, temos que esvaziar o corpo e a mente para podermos deixar entrar essa energia poderosa que nos regenera em nossas energias psíquicas e físicas.

No nível social, se não soubermos esvaziar - se estivermos sempre armados e cheios -, nada conseguiremos receber. Aquele que nada recebe significa que não consegue perceber nada, apenas que tudo é a si mesmo: “Eu penso, eu vejo, eu acredito, eu sei...”. Esse tipo de pessoa não consegue perceber a realidade das coisas.

No I Ching, nós temos os quatro caminhos do Hexagrama: o caminho do sentimento e o caminho da emoção, o caminho da mente e o caminho da materialização. O caminho da materialização toca o extremo do Trigrama Interno. Isso significa que o realizador precisa saber trazer a realidade externa para dentro e levar as idéias interiores para fóra. Tem que haver a troca, senão a materialização não se realiza.

Se uma pessoa não vir o que está fóra e vir apenas o que está dentro, ela apenas percebe o que é bom para si mesma mas não consegue perceber o que é bom para os outros.

Muitas vezes, o nosso ego - o eu acho, eu penso, eu acredito -, é tão grande que fazemos um grande esforço para nos dedicarmos aos outros ...., mas na verdade não podemos perceber o que os outros querem.

Quem não tem o vazio, não pode receber nada.

Romper permite a renovação
Possuir pouco permite a aquisição
Possuir muito permite a ganância.

Aquele que sempre tem pouco, sempre pode ter mais. Quem tem muito, sempre está buscando algo a mais. Aquele que está ansioso por muito, nunca está satisfeito. Quem se satisfaz com pouco, qualquer coisa que venha, é uma grande conquista. Isso não é uma teoria de conformismo.

Se nossos valores estiverem apenas no nível material, podemos achar que o homem rico é mais feliz do que o homem pobre. No entanto, quando a pessoa chega a dizer que possui tudo o que quer, casas, carros, viagens, começa a sentir que algo falta e por isso, sai em busca de estudos, de algo mais espiritual.

Na essência, o Taoísmo pensa que não é mais importante ter mais ou ter menos. Não é nenhum pecado se ter mais materialmente. Não é pecado ser rico, ter dinheiro. Por outro lado, o Taoísmo também não diz que o voto de pobreza é bom. Isso seria pouco sensato porque pobreza não é bom, nem na matéria, nem na energia, nem no espírito. A riqueza é boa na matéria, na energia, no espírito. Apenas temos que ver em qual nível se situam tanto a riqueza quanto a pobreza.

Na realidade, vemos que nem sempre podemos conquistar as coisas materiais. E também vemos que sempre podemos conquistar as coisas espirituais. Podemos conquistar as coisas espirituais sem precisarmos da forma e da matéria. A felicidade está no nível espiritual.

Tanto ricos quanto pobres morrem sem levarem nada consigo. Não levam nem seus corpos físicos. Apenas levam seus Karmas, aqueles cristaizinhos que constituem nosso Karma. Somos assim, não levamos todo o nosso Karma e sim apenas a síntese de nosso Karma para outra vida.

Dessa maneira, é bem melhor viver uma vida que flua e que seja alegre e iluminada não importando se somos ricos ou pobres... porque, no final das contas, ricos ou pobres, todos nascemos e morremos igualmente.

Por isso, o Homem Sagrado abraça a Unidade
Tornando-a modelo sob o céu

A Unidade é a síntese: tudo converge a um ponto só. Esse ponto é a Consciência. Essa Consciência é a luz que existe em nosso interior e que faz com que a energia gire em torno, todos os pensamentos e toda nossa vida. esse ponto central é exatamente a Consciência pura, a energia pura que faz com que tenhamos um sentido na vida.

Esse ponto corresponde à primeira das quatro virtudes do I Ching:

- o princípio
- a abertura
- a harmonia
- a retidão
-

O princípio - que é a causa primordial de todas as coisas - é um ponto central que faz com que nossas vidas girem em torno dele e naquilo em que acreditamos. Se nossas vidas não tiverem um eixo, seria o caos. Se acreditamos em alguma coisa, se temos um fundamento interior, esse fundamento, esse eixo, esse algo em que acreditamos, pode ser um ideal, um princípio pessoal e que, para um pode ser diferente do do outro.

No eixo, as pessoas vivem em equilíbrio, mais harmoniosas. Isso é exatamente o que Lao Tse chama de Homem Sagrado que abraça a Unidade.

Essa Unidade - no sentido mais puro metafísico taoísta -, é uma Consciência pura, é uma quietude interior, uma consciência feita de silêncio, uma quietude interior que a todo momento pode estar presente.

Todos nós podemos ficar um minuto em silêncio e nesse silêncio, tentarmos encontrar a quietude, a calma. Todos entendemos o que é o silêncio. E se o entendemos é porque ele existe dentro de nós.

Se conseguirmos entender que existe uma Consciência Pura - a consciência do silêncio da quietude interior - dentro de nós, em todos os momentos conseguirmos vivê-la. Sabemos, pelo menos teoricamente, o que ela é - porque esse código faz parte do nosso registro de computador interior. Então, é sempre possível que encontremos essa Consciência pura.

Em outra maneira de dizermos sobre isso, podemos estar num ambiente agitado, cheio de pessoas conversando e podemos estar todo o tempo nos mexendo e falando - mesmo assim podemos sentir uma serenidade interior, a nossa Consciência pura.

A Consciência pura é algo que está sempre lá. Se nos mantivermos sempre dentro de nosso eixo, sempre a encontraremos dentro de nossa quietude, ou seja, podemos manter harmoniosamente a consciência ativa e externa e a Consciência pura, interior.

A presença da Consciência pura é o silêncio, a quietude, a paz interior.

Se, ao contrário, perdemos nosso eixo, entramos num movimento desordenado e perdemos a Consciência.

Por isso, no Taoísmo, sempre dizemos que devemos colocar a quietude interior intuitivamente dentro de nós, para não perdermos nosso verdadeiro eu, nossa Consciência pura, em tudo aquilo que tivermos que fazer.

Sob o céu - e uma maneira poética de ver o mundo, para que essa Unidade seja o eixo, o modelo do mundo. Se todas as coisas puderem girar em torno desse eixo - que é a Consciência pura -, então o mundo naturalmente estará ordenado.

Em seguida, Ele diz:
Não julga por si, por isso é óbvio
Não vê por si, por isso é resplandecente
Não se vangloria, por isso há realização
Não se exalta, por isso cresce
Só por não disputar, nada pode disputar com ele

Quando se quer entrar num lugar sem ser percebido, a pequena mágica que se faz é exatamente se colocar na quietude. Tendo o silêncio interior, a gente se torna menos visível, menos perceptível. Então, nos tornamos invisíveis entre as pessoas, chamando menos atenção, sendo menos notável.

Isso é contrário aos valores sociais comuns, sobre os quais anteriormente citamos. Tudo tem que ser pleno, ninguém pode se curvar, todos têm que ser alguém, numa personalidade forte, ninguém quer ser invisível.

Não julga por si e não vê por si - significa não apegar-se ao ego. Quando não se vê por si, se vê através dos olhos de todos os seres.

Não julgar por si é deixar que a coisa se mostre por si mesma, que se revele.

Qual a diferença entre o julgar e o discernir?

Discernir é saber ter uma quietude e observar a natureza, simplesmente. Ver as coisas como elas são.

Julgar é colocar um conceito mais radical e mais rígido nas coisas que vemos. Então, as coisas deixam de ser o que elas são. E passam a ser camufladas por nossa mente.

Portanto, não julgando, nós simplesmente encaramos as coisas como elas são e então, passamos a ter discernimento.

No não-julgamento, no discernimento, podemos ver as coisas como elas naturalmente são e, em seguida, podemos agir de acordo com o que precisa ser feito. Isso é o que Lao Tse chama de ‘naturalidade’. Fazer as coisas naturalmente, sem deixar de fazê-las; e quando tiver que fazê-las, fazê-las.

Quanto menos palavras exteriores ou interiores existirem, o julgamento fica mais no nível do discernimento. Quando se explica demais, caímos no julgamento.

No discernimento, temos que trabalhar mais com a Consciência do que com a mente.

Quando não conseguimos chegar à consciência, devemos pelo menos usar a intuição - que é mais próxima da Consciência pura do que a mente. A mente é muito complexa.

Quando percebemos que a mente está camuflando, usamos a Consciência. Não conseguindo usar a Consciência, usamos a intuição. A intuição, no entanto, já é influenciável pela mente. Também, às vezes, a mente consegue funcionar próxima da Consciência.

Não se vangloria, por isso há realização - para nos realizarmos e crescermos, precisamos ter humildade. Temos que ter a vontade de realizar as coisas, temos que ter a Consciência pura para realizar as coisas naturalmente e ao mesmo tempo, temos que saber não nos vangloriamos nem nos exaltarmos diante de nossos feitos.

Mestre Maa nos diz que ‘não se exaltar, significa ter humildade’. Sempre devemos considerar os frutos de nossa realização como resultados da bondade celestial, das virtudes dos ancestrais e das virtudes dos mestres e das outras pessoas. É sempre bom atribuirmos aos nossos ajudantes, as nossas realizações. Isso mostra uma maneira humilde de ser. Novamente, essa questão entra em divergência com a cultura contemporânea.

Mesmo dentro do Taoísmo, se diz que se a pessoa não batalhar para trabalhar e realizar as coisas materialmente e espiritualmente, nada poderá ser realizado porque nada cai do céu.

Isso é uma metade do conceito e é para incentivar as pessoas a empreenderem e a realizarem.

A outra metade do conceito, revela-se ao contrário. Diz que uma vez realizado o trabalho, agradece-se a ajuda e a proteção das divindades que nos acompanham e dos mestres que nos direcionaram, e dos pais que nos educaram... A partir daí, todas as coisas realizadas passam a ser não um mérito pessoal mas sim mérito de um conjunto.

A primeira metade do conceito fala da necessidade de batalhar, de agir para realizar as coisas e a segunda metade fala em aceitar todos os frutos da realização com profunda gratidão.

O que falta à sociedade moderna é exatamente esse sentimento de gratidão. Gratidão é um sentimento. E não é um sentimento teórico. No entanto, a cultura comum está fundamentada na auto-realização do homem que deve saber lutar pelo que quer e que deve se sentir realizado e colhedor dos frutos que semeou.

Devemos sempre ter gratidão pelo que recebemos, uma profunda gratidão que deve estar no fundo da nossa alma. Devemos sempre fazer o melhor possível para passar para frente os frutos do nosso trabalho, não nos vangloriando nem nos exaltando. Assim, cresceremos e nos realizaremos de verdade.

Só por não disputar, nada pode disputar com ele - Lao Tse, em outro Capítulo do Tao Te Ching, diz que
O homem se orienta pela terra
A terra se orienta pelo céu
O céu se orienta pelo Tao
E o Tao se orienta por sua própria natureza

Se pensarmos nisso em uma hierarquia mecânica, o homem depende da Terra para viver, a Terra depende do cosmos para viver, o cosmos dependo do Absoluto para existir e o Absoluto depende de si próprio.

Então, o mais alto é o próprio Tao, o Tao que está em toda a parte e em todas as pessoas. O Tao não briga com ninguém, não disputa com ninguém, não impõe nem obriga. O Tao simplesmente é uma Consciência quer permite tudo girar em torno dele, alimenta todos os seres e permite todas as coisas existirem e permite aos seres e a sociedade fazerem suas vidas, seus destinos, naturalmente.... muitas vezes, contrariando as leis da naturalidade e do equilíbrio - mas o Tao permite.

O Tao não disputa com ninguém e ninguém pode disputar com o Tao. O Vazio não briga com nenhuma forma e nenhuma forma é capaz de derrubar o Vazio.

Podemos derrubar a palavra da pessoa, a força da pessoa, mas não podemos anular a Consciência pura da pessoa. Essa é a força que existe no espírito das pessoas. Se alguém não disputa nada com ninguém, ninguém pode disputar nada com esse alguém.

Num nível mais rasteiro, se uma pessoa tem a consciência de si mesma, não precisa disputar com ninguém. Simplesmente faz o que deve fazer em sua vida, em seu destino, e pronto. Também ninguém pode disputar nem brigar com essa pessoa.

No resumo, Ele diz:

Antigamente se dizia: “Curvar-se permite a plenitude”.
Como poderiam ser palavras vazias?

Essa frase, dita há três mil anos atrás, provavelmente teria sido colhida por Lao Tse de um texto mais antigo.

Não é uma palavra vazia, é uma profunda sabedoria, o curvar-se.

Assim, ao alcançar a plenitude, encontra-se o retorno

Quem se realiza no estado da plenitude, volta ao ponto do início que diz:

Curvar-se permite a plenitude
Submeter-se permite a retidão
Esvaziar-se permite o preenchimento

............................................................................................

No estado da plenitude encontramos a mesma humildade e simplicidade iniciais.

A plenitude é a infinitude.

Se alguém for capaz de encontrar a perfeição no ponto final, então não alcançou a plenitude - que é a própria infinitude.

A infinitude é algo que não tem fim.

Se entendermos a infinitude como a plenitude - que não tem fim nem início - então a humildade e a maleabilidade do início, existirão no durante e no infinito - que não tem fim, não tem início e está em todos os momentos. Por isso, é infinito. Por isso, é pleno.

A plenitude sem humildade não existe.

...............

Foto de Janine Milward

TAO TE CHING

O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE

Lao Tse, o Mestre do Tao

Tradução e Interpretação do Capítulo 22
do Tao Te Ching, de Lao Tse,
por WU JYH CHERNG

Transcrição e Síntese de Aula Gravada na Sociedade Taoísta do Brasil,
Rio de Janeiro, em 06 de dezembro de 1994

Transcrição e Síntese de Janine Milward

A tradução dos Capítulos do Tao Te Ching foi realizada por Wu Jyh Cherng,
do chinês para o português,
e foi primeiramente publicada pela Editora Ursa Maior,
sendo hoje publicada pela Editora Mauad, São Paulo, Brasil

Nesta mesma Editora, encontra-se
a realização da publicação das interpretações de Wu Jyh Cherng
acerca os 81 Capítulos da obra máxima de Lao Tse, o Tao Te Ching