O Retorno à Fonte Original


O Retorno à Fonte Original


Janine Milward

Uma conversa entre a autora
e um monge do Caminho da Bem-Aventurança
expressando a harmoniosa interação entre o Tao e o Tantra Primordiais


As tardinhas e noites das terças-feiras eram sempre motivo de alegria pois chegavam os monges da Ananda Marga, o Caminho da Bem-Aventurança inspirado por Srii Srii Anandamurti e reunia-se um pequeno grupo na cidade, para a prática de yoga e de meditação.

            Durante alguns poucos anos, eu tive a grande felicidade, o imenso privilégio de poder acolher esses monges no Sítio das Estrelas.  Esse lugar, minha moradia, foi transformada por eles em um Ashram e assim permanece até os dias de hoje...

            Os monges e eu conversávamos muitíssimo, normalmente durante e após nosso jantar, e houve uma conversa entre mim e um dos monges - mais precisamente Dada Jinenananda - que eu julguei de tal importância que, se bem me recordo, no dia seguinte, após ter conduzido o monge até a rodoviária para seu caminho de retorno á cidade grande onde trabalhava e ao Mosteiro onde morava, eu rapidamente me sentei diante do computador e me pus a retirar de minha memória nossa conversa da noite anterior e acabei tecendo o texto abaixo :

......................

Depois do jantar, já tarde da noite, eu ainda resistia em ir para cama, queria muito conversar um pouquinho mais com o monge, queria aprender mais sobre as sementes que nascem de novo e sobre as sementes que não nascem de novo – sobre a mortalidade e sobre a imortalidade.

-   Dada, diga-me alguma coisa sobre a “semente queimada”.

O monge sorriu.

-   “A semente queimada”, Daghdhabiija,  é quando a pessoa consegue atingir um estágio em sua vida onde, para ela, não existem mais Samskaras – nem passados, nem presentes e nem futuros... ”As sementes queimadas” são todos os Samskaras exauridos - ou seja, a ação, Karma,  e sua reação real ou em potencial, Samskara, deixam de existir – porque o aspirante espiritual alcançou a Liberação da Mente, a plenitude de sua consciência, enfim podendo se fusionar inteiramente com Paramapurusa, a Suprema Consciência.

  -  Mas, como se consegue chegar aí, como alcançar este estágio de espiritualidade?

O monge olhou atentamente em meus olhos, com seriedade, com serenidade, com emoção.

-   A meta de nossa vida é alcançar Paramapurusa, a Suprema Consciência e sermos Unos com essa Consciência Cósmica, com o Absoluto. Antes de mais nada, é preciso que  reconheçamos esta meta como a única e verdadeira verdade a ser seguida em nossas vidas... Todo o resto, todo o nosso cotidiano, tudo deve ser vivenciado e dirigido no sentido de nos conscientizamos inicialmente dessa meta....
A meditação, certamente, é o grande primeiro passo  desse longo Caminho.  É por isso que  a Primeira Lição de Meditação, a Iniciação Espiritual, é tão importante porque ela já nos mostra o Caminho.  O Caminho se faz ao caminhar.... Todo o tempo o Guru, o Acarya,  os auxiliares espirituais estarão nos ajudando,  nos apontando nosso Caminho, não nos deixando desviar de nossa meta fundamental de vida.... Mas o verdadeiro caminhar, a realização do Caminho,  somente o aspirante espiritual pode fazê-lo por si mesmo, através de seu esforço, de seu Conhecimento, Jinana, de sua Ação, Karma, e de sua Devoção, Bhakti.

-   Você se lembra, Dada, que eu gravei uma das palestras do Retiro Espiritual em que estivemos recentemente na fazenda-mosteiro, Ananda Kiirtan?  Bem, certamente me parece que o texto – que acabei de transcrever - vem bem a calhar porque trata exatamente desse assunto:  A Liberação,  Mukti.  Você quer ver o texto agora?

-   Bem, já é tarde, você não acha?  O dia hoje foi longo e a noite também!  Quem sabe você poderia fazer uma cópia e eu a levarei comigo?

-   Está bem, está bem....mas, Dada, me diga somente mais uma coisa: liberar-se dos Karmas e Samskaras, alcançar a Liberação, tornar-se uma verdadeira “semente queimada” – aquela que não mais nasce - e se fusionar com a Consciência Cósmica  –  tudo isso  –  significa imortalidade?

-  Sim.

-   Mas... e todo o resto, e todo o mundo,  todas os outros seres que restam....o que será deles, quero dizer, não seria algo um tanto egoísta se atingir a imortalidade, se fusionar com Paramapurusa, se tornar a própria Consciência Cósmica  e abandonar todos os outros seres à sua própria sorte, sua própria busca, seu próprio Caminho?

-  Talvez alcançar a imortalidade – e abrir mão dela – e continuar como semente que sempre pode nascer novamente....para dessa maneira ajudar a todos os outros seres alcançarem também a Liberação – até o último ser – talvez seja essa a Coroação do Caminho, não é verdade?  Chegar até Paramapurusa e voltar para dizer, se isso fosse possível, mas voltar para ajudar todos os outros seres encontrarem também Paramapurusa  -  esta é a meta que está além da meta original!
Retornar à Fonte Original e  alcançar a imortalidade.... e voltar a assumir a mortalidade, re-assumir o Espaço dentro do Tempo – este sim,  este é o verdadeiro Mestre – aquele que já é Semente Queimada, porém que retorna da Fonte Original que tão bem conheceu para se tornar novamente Semente que nasce de novo.... Nosso Guru, nosso Mestre, Baba, sempre dizia que é realmente muito difícil retornar à Roda do Samsara depois que nos fusionamos com Paramapurusa.... É como o inseto que se sente totalmente atraído pela luz e que fica voando em torno dela sem conseguir se afastar..... é um embevecimento, um maravilhamento....

Por alguns segundos pairou um silêncio profundo entre o monge e eu.  O monge levantou-se, fazendo como quem já quer ir dormir, para acordar bem cedo no dia seguinte e seguir seu caminho.  Porém, eu insistia...:

-   Você então diria que esse mestre poderá exercer uma escolha?  E que esta escolha também poderá significar que ao invés de retornar a este universo – quem sabe ele poderá  tornar-se a Semente-que-nasce-de-novo que dá início a um novo universo?

-   Você quer dizer, ainda abraçar a imortalidade através de uma nova condição de Tempo e Espaço? - o monge sentou-se novamente, interessado.

- Sim, é bem isso.

-   Bem,  é possível que isso possa acontecer sim.  Paramapurusa está, na verdade, além do Mundo da Manifestação, ele é o próprio Mundo da Não-Manifestação, a imortalidade da imortalidade, a eternidade da eternidade, a infinitude da infinitude.... o Mundo sobre o qual não se fala – porque não se tem como falar sobre.  A verdade é que quanto mais esticamos a imortalidade, a eternidade, mesmo assim, apenas encontraremos algo em que em algum ponto – espaço - ou  em que em algum momento – tempo -, esbarra em algum tipo de finitude, de final.  Mesmo que esse final sempre leve a um novo começo....
Somente Paramapurusa, Nirguna Brahma, pertence à verdadeira eternidade, o Mundo da Não-Manifestação, a Consciência Cósmica não-manifesta.  Todo o resto é Saguna Brahma, aquilo que existe, o Mundo da Manifestação, a Consciência Cósmica manifesta.
O que importa é compreendermos que Paramapurusa é o núcleo primordial, a fonte original. Quanto mais a compreensão científica do universo avança, tanto mais Paramapurusa conserva sua primordial qualidade, a de ser a totalidade, a de conter a totalidade dentro de si.
Tudo no universo é externo à Paramapurusa.  Somente Paramapurusa possui  interiorização apenas.  Mesmo que o Big Bang seja advindo de um núcleo, de uma semente plena de vida, de tempo e de espaço, sua total interiorização já é uma manifestação proveniente do Mundo da  Manifestação de Paramapurusa, de Saguna Brahma, da Consciência Cósmica manifesta.
 Tudo no universo - ou multiverso, como queira - está contido dentro de Paramapurusa.
Assim, estando contido dentro de Paramapurusa, tudo no universo, tudo, é apenas exteriorização.
Então é  por isso que a meditação é tão importante, ela nos leva a nos interiorizar, nos aprofundar em nós mesmos e nos tornar Unos com a grandiosidade dessa interiorização – nos tornar unos com Paramarurusa.

Enquanto o monge falava, eu fui até a estante e voltei havia  com um pequeno livro em minhas mãos - a tradução que Cherng fez para os 81 Capítulos do Tao Te Ching, de Lao Tse:

- Sobre tudo isto que falamos até agora, Lao Tsé nos diz, no Capítulo 40:

O retorno é o movimento do Tao
A suavidade é a atuação do Tao
Os seres sob o céu nascem da existência
E a existência nasce da não existência

-    Você bem sabe que o Tao surgiu a partir do Tantra.  O Tao é filho do Tantra. O Tantra é a raiz de tudo.  Tantra em sânscrito quer dizer  “Aquilo que libera da escuridão, da ignorância” – o conhecimento aliado à ação e à devoção..  O Tantra surgiu há cerca de 7 mil anos atrás e a partir dele foram se formando religiões e filosofias.  No entanto o Tantra é uma prática e não simplesmente uma teoria: vivenciar o mundo como expressão da infinitude da Suprema Consciência.   -  o monge nunca se cansa de repetir isso.

-   E a não-existência?  Não seria ela interior, incontaminada – digamos assim?

-   Ainda não totalmente – pois que ela já está sendo nomeada, falada sobre.  Até a não-existência não escapa de ser exterior, ainda pertence ao Mundo da Manifestação – porque ainda nos suscita uma expressão, uma denominação.  .
A não-existência é exterior ao que ela provém.  Daquilo que a não-existência provém, faz parte do reino da absoluta interiorização.  E sobre isso, não se  fala sobre, não se tem linguagem para.  É o Mundo da Não-Manifestação.

- Mais uma vez retomo  Lao Tsé:

O caminho que pode ser expresso
não é o Caminho constante
O nome que pode ser enunciado
Não é o Nome constante  (2)


O caminho e o nome (com letra minúscula) pertencem ao Mundo da Manifestação e portanto, podem ser expressos e enunciados.  O Caminho e o Nome (com letra maiúscula)  são o Tao e são constantes, ou seja, são eternos, fazem parte do Mundo da Não-Manifestação. - e continuei: -  Sendo assim, Paramapurusa, Tao, seriam a denominação mínima e máximamente possível para a  absoluta  interiorização sem qualquer possibilidade de exteriorização.

-   Interiorização absoluta, sim, isso é correto.  Porém, certamente com absoluta exteriorização que seria o princípio da não-existência que faz surgir a existência.
É a criação.  A criação nos remete a seu criador... que por sua vez seria anterior à própria criação...No Tantra, Saguna Brahma nos revela Paramapurusa do Mundo da Manifestação que provém de Nirguna Brahma que nos revela Paramapurusa do Mundo da Não- Manifestação.  -  O monge também não mais parecia querer retirar-se para seu Ashram, ele sempre adora uma boa conversa!

Eu quis trazer à tona um tema que volta e meia me perpassa a mente:

- A idéia de uma mente suprema, de uma consciência cósmica, me parece demasiadamente humana, pouco abstrata ..... ainda pertencente ao campo da existência - assim como o cristianismo se refere a Deus, por exemplo.. .
O Tao, talvez o Tao nos revele algo mais abstrato, menos humanizado.... e certamente mais universalizado e impersonalizado.

-   Uma vez mais lembro a você que o Tao nasceu do Tantra. – retrucou o monge, pacientemente. Ao que eu emendei:

-   A verdade é que todo o tempo a ciência caminha mais profundamente no tempo e no espaço para procurar as respostas para suas questões. Eu venho lendo várias artigos onde os cosmólogos dizem, e dizem bem, que o  universo – ou multiverso – é como a Liila,  O Jogo Cósmico.  Se tentarmos compreender a Liila através de nossa exteriorização, do Mundo da Manifestação, então poderemos pensar que se existe um Criador, uma Consciência Cósmica .... certamente nem mesmo esse criador saberia aonde alguns dados desse grande jogo se esconderam....

O monge sorriu:

-   Se, no entanto, tentarmos compreender a Liila através da nossa interiorização absoluta,  mergulhando no Mundo da Não-Manifestação -  então poderemos finalmente nos calar... e compreender.

Eu  continuava folheando seu livrinho do Tao Te Ching:

-          Lao Tsé diz:

O que é da compreensão, não é a palavra
O que é da palavra, não é a compreensão. (3)


O que se sabe, fala-se somente através da existência , mesmo que baseando-se na não- existência.
E o que não se fala, sabe-se também através da existência, mesmo que baseando-se na não existência..... 

O monge concordou:

-   O Conhecimento, Jinana, é a base do triângulo cujas vértices são Karma, a Ação e Bhakti, a Devoção.  Este triângulo cujas vértices apontam para o céu,  é a estrutura fundamental para alcançarmos a Liberação, Mukti.
    
Eu parecia querer ainda uma última resposta antes de irmos todos dormir:

-   E o que se faz para se encontrar o Conhecimento, Jinana, .... para não saber.... e no entanto, saber?
 O monge sorriu:

-  Srii Srii Anandamurti, nosso Baba, nosso querido Guru, nos diz:

“A Consciência Suprema se encontra dentro de você assim como a manteiga está no leite; bata a sua mente através da meditação e Ela aparecerá – você verá que a resplandecência da Consciência Suprema ilumina todo o seu Ser interior.  Ela é como um rio subterrâneo dentro de você.  Remova as areias da mente e você encontrará a água fresca e límpida no interior.”

Enquanto falávamos, fomos andando  em direção ao Ashram do monge, ajudando-o com sua pequena bagagem e seus cobertores para protegê-lo da madrugada gelada, quando a neblina  desce e envolve todo o vale verde da Estrada do Belém....

-   Bem, acredito que já seja hora de todos irmos nos entregar à nossa absoluta interiorização de uma boa – porém curta – noite de sono.... Namaskar, Dada, boa noite, tenha bons sonhos....

-   Namaskar!


Com um abraço estrelado,
Janine Milward
Extraído do meu livro
O CAMINHANTE CAMINHANDO SEU CAMINHO
http://ocaminhantecaminhandoseucaminho.blogspot.com.br/
FOTO: Sítio das Estrelas, Janine Milward